Machado de Assis e a sociedade brasileira

Esse texto é uma síntese da crítica sobre Machado de Assis, principalmente de Roberto Schwarz, principal crítico de Machado de Assis, cujas entrevistas elucidativas encontram-se facilmente no Youtube.

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Dos jargões sobre Machado de Assis, muito se fala que era homem de seu tempo e de seu país. E de fato era. Nenhum escritor até a virada machadiana (em 1881 com a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas) havia transposto com tamanha eficácia a realidade brasileira para dentro da obra literária. Antes disso – e o próprio Machado entra nessa conta – a literatura brasileira via-se na posição de cópia da literatura europeia, com aspectos aqui e ali de “brasilidade”, mas sempre ou de maneira artificial, ou sob o manto romântico que impossibilita um olhar real da vida. Dois exemplos: Iracema de Alencar é uma tentativa de evocar o índio como figura nacional, mas Alfredo Bosi percebe bem que há uma contradição entre a representação do ameríndio, no caso Iracema, e a posição do narrador, visivelmente ocidental; outro caso é, por exemplo, o último romance antes das Memórias, Iaiá Garcia, já abarcando parte do processo social brasileiro (o mundo do favor, das subidas e descidas sociais de quem não era proprietário nem escravizado), mas com final feliz, incoerente com a vida do Rio de Janeiro do século 19.

Para, então, mostrar de fato a realidade brasileira no romance, Machado de Assis muda o ângulo narrativo e, por conseguinte, o ângulo social: passa a narrar os de cima, os proprietários de escravizados. A chave está justamente aqui: a escravização é o ponto de maior tensão da sociedade brasileira até hoje, e é justamente sobre ela que Machado falará e fará a crítica, mas, digamos, do avesso, mostrando não os de baixo, escravizados, e as opressões que sofreram desde o início do processo de colonização, mas os responsáveis por ela, os proprietários, uma parte da elite brasileira do século 19. O narrador das Memórias é Brás Cubas, que morto conta sua história, que aliás é banal, desinteressante. O que importa é, segundo Roberto Schwarz, perceber o que o autoriza a falar do jeito que fala, a se expor de maneira desabusada e sem culpa. A resposta é: a propriedade. O que permite que Brás Cubas seja canalha ao extremo dizendo que nunca precisou comprar o pão com o suor do seu rosto ou dizer que sua genealogia começa num e não noutro parente porque o outro era um trabalhador braçal é o arbítrio dos proprietários, é a consciência de que quem possui terras e escravizados tem o poder acima de todos, inclusive do “poder estatal”, que se hoje é ínfimo,  imaginemos no século 19. Brás Cubas usufrui de sua posição (e como está morto não precisa esconder nada, não tem culpa do que falar) e então mostra a verdadeira face, sem restrições, da elite proprietária e de seu modo de agir e pensar.

Última coisa antes de acabar esse breve texto é o que Roberto Schwarz chamou de as ideias fora do lugar. É o nome do ensaio clássico que abre o livro Ao vencedor as batatas, primeira parte do estudo do crítico sobre Machado de Assis, e pretende esboçar o que seria o pano de fundo histórico dos romances o escritor.  A ideia é a seguinte: argutamente, Schwarz percebeu que há um descompasso de ideologias no Rio de Janeiro de Machado de Assis: uma contradição estruturante entre liberalismo e escravização. Brás Cubas é a personificação de tal problema: é liberal para o público, escravocrata no privado. Embora hoje já haja críticos do modelo de Roberto Schwarz (Luís Augusto Fischer, em trabalho recente, aponta para alguns limites, principalmente pelo tom totalizante de Schwarz transformando o Rio de Janeiro capital em Brasil), é um achado tão impressionante que funciona até hoje.

Joaquim Maria Machado de Assis, primeiro grande escritor negro da literatura brasileira, construiu uma obra de tal envergadura que antecipa problemas do Brasil atual além de indicar, em ironia cruel, a suspensão do processo social brasileiro.

Rodrigo Mendes

 

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