Censura ao ‘David’ de Michelangelo e elitismo cultural

Já faz alguns anos que o museu Galleria dell’Academia, de Florença, tem travado uma guerra contra o uso da imagem da escultura David, de Michelangelo, considerado inadequado pois feriria a “dignidade” dessa obra de arte – trata-se de uma das criações mais famosas do artista, da própria renascença, e uma daquelas pelas quais os turistas mais se interessam quando visitam o local.

Cópia do David na Piazza della Signoria, em Florença. Acervo pessoal.

É uma luta que a diretora do museu, a alemã Cecilie Hollberg, trava desde sua entrada na instituição, em 2015. Dois anos depois, uma decisão judicial condenando uma agência de viagens local que usou a imagem da escultura para sua promoção, criou um precedente para a aplicação de uma diretriz do Código de Bens Culturais italiano, segundo o qual os museus do país decidiriam quando e como as imagens das obras conservadas dentro de seus muros poderiam ser usadas para fins comerciais, mediante pagamento, é claro. Desde então, outros museus italianos moveram ações semelhantes para – em teoria – proteger criações tais como o Homem vitruviano, de Da Vinci, e O nascimento de Vênus, de Botticelli, algumas das mais famosas do Renascimento.

Entretanto, tal postura vai de encontro ao acordo da Convenção de Berna relativo aos direitos autorais, assinado por mais de 180 países, incluindo a Itália, que dita sua proteção até 70 anos depois da morte do autor ou artista. Considerando que a escultura, o desenho e a pintura mencionados foram feitos há mais de 500 anos, a União Europeia analisa se o código viola a diretiva do bloco, que estipula que a imagem de toda obra que não é mais protegida por direitos autorais passa a ser de domínio público.

Mas essa foi somente a primeira batalha de uma longa guerra. Agora, a Galleria dell’Accademia também se mobiliza na justiça contra souvenirs que mostram a nudez de David em camisetas, aventais de cozinhas e estatuetas coloridas produzidas em séries, além de itens de marcas de luxo, como uma bolsa da francesa Longchamp, que seriam “degradantes”, segundo Hollberg.  

A ideia de imagens das partes íntimas de uma estátua serem degradantes ou passíveis de ferir a dignidade de tal escultura, é, no mínimo, risível, dado que se trata de um objeto inanimado que não tem a capacidade de se sentir ofendido ou envergonhado. Mas, se pensarmos de maneira mais abstrata, teria a própria arte e seu conceito uma ‘dignidade’ a ser ferida? E, se sim, de quem seria a responsabilidade de definir o que a fere ou não, o que é de bom gosto e o que não é? E porque essa nudez seria algo degradante ou ofensivo, dado que na época que a obra foi criada não havia problema em representar personagens mitológicos, históricos ou bíblicos nus? O conservadorismo que faz com que pinturas mostrando seios sejam censuradas no Instagram e em escolas parece maior do que há 500 anos atrás.

E, apesar da hostilidade em relação à reprodução em massa de imagens poder ter impactos negativos na visibilidade das obras italianas e no turismo local – ao meu ver, o dinheiro recebido pelas instituições pelos direitos de imagens é ínfimo em relação ao que poderia ser arrecadado com a visibilidade, os turistas e afins – , o que mais choca é o elitismo subjacente à ideia de que especialistas e curadores possam ter o monopólio na determinação da maneira “correta” de apreciar e se relacionar com a arte, o que coloca em risco a própria liberdade de expressão.

Por fim, lembremos que, muitas vezes, o primeiro passo para despertar interesse pela história da arte pode ser através de uma obra famosa estampada em uma camiseta engraçadinha ou uma visita a um museu para tirar uma selfie com aquela pintura queridinha das redes sociais.

Referências:

Laura ANTONINI, “La borsa di lusso con le parti intime del David: «Uso non autorizzato dell’immagine»” IN Corriere Fiorentino, [Online]. Consultado em.
https://corrierefiorentino.corriere.it/notizie/cronaca/23_giugno_01/la-borsa-di-lusso-con-le-parti-intime-del-davide-a2ad01df-d8e2-490d-9c6f-70ea630b8xlk.shtml?refresh_ce

Elise MORTON, “Taste vs freedom of expression: Could ‘debasing’ souvenirs of Michelangelo’s David be banned?” in Euronews, [Online]. Consultado em20/04/2024. https://www.euronews.com/culture/2024/03/28/taste-vs-freedom-of-expression-could-debasing-souvenirs-of-michelangelos-david-be-banned

Foto de capa: Olga Lioncat / Pexels.

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