
Fonte da imagem: Wikipédia.
A cena nomeada A Grande Prostituta sobre as Águas é uma das quinze que compõem a quinta peça da Tapeçaria do Apocalipse de Angers, a maior tapeçaria medieval preservada até hoje, única em sua iconografia. A obra foi encomendada na década de 1370 pelo Duque Luís I de Anjou, filho do Rei João, o Bom, da França, para adornar a capela do castelo ducal em Angers. No canto superior esquerdo, no “início” de cada peça da tapeçaria historiada – algo como uma imensa “história em quadrinhos” -, há uma grande figura seguida de quatorze cenas, tal como A Grande Prostituta sobre as Águas, distribuídas em dois registros, alternando fundos azuis e vermelhos. O tema é inspirado no último livro da Bíblia, o Apocalipse, do autor que se apresenta como João. Ele é representado na tapeçaria com uma auréola, como convém a um santo, acompanhado de um anjo que lhe segura a mão e lhe mostra a visão relatada no livro bíblico: as ações dos poderes do mal antes do triunfo decisivo de Deus e do início de seu Reino. Ou seja, o tema desta tapeçaria é justamente o da luta do bem contra o mal.

Imagem de Philippe Berthé / Centre des monuments nationaux.
Na cena A Grande Prostituta sobre as Águas, o anjo mostra ao profeta uma mulher loira que se olha em um espelho e penteia seus cabelos. Ela usa um vestido, provavelmente violeta, sendo a púrpura uma cor luxuosa na época – na fotografia tirada do verso da tapeçaria, o tom é rosado -, e um cinto de ouro decorado com pedras preciosas e pérolas. Elementos arquitetônicos – exatamente os mesmos das cenas 58 e 62, alguns dos desenhos preparatórios tendo sido reutilizados – aparecem do lado esquerdo da imagem, de onde vêm o anjo e o santo. À direita da composição, a paisagem onde se encontra a mulher identificada como a Grande Prostituta é sugerida através de uma árvore e águas divididas em quatro níveis – o número quatro representando o homem, o universo e o temporal -, onde ela supostamente habitaria: “As águas que viste, onde habita a grande prostituta, são povos, multidões, nações e línguas” (Ap 17, 15). O fundo é achatado, azul escuro, com folhagens estilizadas em azul e branco e um símbolo debatido dentro de uma mandorla.
Ao ler o capítulo 17 do Apocalipse, é possível perceber que a representação não segue o texto à risca:
“Venha, eu lhe mostrarei o julgamento da grande prostituta que reside nas margens dos oceanos.
Com ela se prostituíram os reis da terra, e os moradores da terra se embriagaram com o vinho da sua prostituição.
Então ele me levou em espírito ao deserto.
E vi uma mulher assentada sobre uma besta cor de escarlate, cheia de nomes de blasfêmias, que tinha sete cabeças e dez cornos.
Ela segurava na mão um cálice de ouro cheio de abominações: a imundície de sua prostituição.
A mulher, vestida de púrpura e escarlate, brilhava com ouro, pedras preciosas e pérolas.”
Apocalipse 17, 1-4
A vestimenta da mulher é próxima do que é indicado no texto, porém, seus cabelos loiros, o espelho e o pente não são descritos. Além disso, a personagem usando tais vestes aparece na descrição do que seria, na verdade, a cena seguinte da tapeçaria, que representa A Grande Prostituta sobre a besta de sete cabeças. Identificada com a cidade de Babilônia, antítese da Jerusalém celeste, a Grande Prostituta – chamada em algumas traduções de “Grande Meretriz” – simboliza a decadência e a perversão da humanidade. Segundo o texto bíblico, “Na sua testa estava escrito um nome misterioso: Babilônia, a grande, mãe das prostitutas e das abominações da terra” (Apocalipse 17,5). A imagem oposta à Grande Prostituta é a Mulher do Apocalipse, descrita no capítulo 12 do mesmo livro como vestida de sol, coroada de estrelas e com uma lua crescente sob seus pés. Ela triunfa sobre a ameaça do Dragão-Serpente – que significa o mal – e é considerada uma prefiguração da Virgem Maria, com símbolos que aludem a esse trecho da Bíblia sendo muito frequentes em representações da Imaculada Conceição.

Conservada no Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA.
Fonte da imagem: Metropolitan Museum of Art.
O espelho, que a mulher segura na mão esquerda, possuía significados tanto positivos, quanto negativos na Idade Média, época de criação da tapeçaria. Muito associado ao pente, alude às mulheres, ao corpo, ao desejo, ao luxo e à beleza, sendo ligado com frequência aos pecados da vaidade e da luxúria. O espelho mostra o rosto envelhecido da mulher, evocando a beleza vã e efêmera da juventude, ou um rosto “feio”, que seria a imagem de sua alma impura. Os espelhos, muitas vezes curvos e convexos, tanto na realidade quanto nas representações artísticas, distorcem o rosto, sendo também associados ao engano e à ilusão. Já aqueles que apresentam manchas significam a imperfeição ou a contaminação do pecado original, culpa da primeira mulher, Eva, segundo o recito bíblico.

Imagem de Antoine Ruais / Centre des monuments nationaux.
Os cabelos loiros da mulher representada, muito valorizados no período, ressaltam sua beleza e seu potencial de sedutora, orgulhosa e vaidosa – como todas as mulheres, com exceção da Virgem, segundo o pensamento cristão da época. O luxo de seus adornos remete às vaidades terrenas e passageiras, além da ideia de que o luxo estimula a luxúria. Os seios são visíveis sob o vestido: eles parecem caídos – segundo os teólogos medievais, a luxúria faz os seios sucumbirem – e os mamilos são bem delineados, como é comum em imagens do período que representam a velhice e a luxúria, sendo frequente, nessa última, que os seios sejam sugados por serpentes.

Proveniente da Igreja de Oô.
Conservada no Musée des Augustins, Toulouse, França.
Fonte da imagem: Site do museu.
Quanto ao símbolo dentro das mandorlas ao fundo, não há consenso sobre seu significado. Diversos historiadores enxergaram neste a letra “Y” do nosso alfabeto, que funcionaria como o monograma de uma mulher próxima ao comanditário, tal como Iolanda de Aragão (grafia com “Y” tanto em espanhol, quanto em francês), esposa do Duque Luís de Anjou à partir de 1400, ou ainda Isabel da Baviera, rainha da França entre 1385 e 1422. Entretanto, nenhuma das hipóteses apresentadas funciona cronologicamente. Além disso, trata-se de uma imagem nada elogiosa ao sexo feminino, sendo talvez estranho a adição de um monograma de uma mulher nesse contexto. É mais provável que se trate da letra upsilon do alfabeto grego, em sua versão maiúscula, que poderia representar os caminhos da vida e da morte, ou ainda a escolha entre o bem e a virtude ou o mal e os vícios, segundo uma ideia atribuída a Pitágoras.
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