“Retrato de mulher” (1646-50), Diego Velázquez
Olhe o que não está ali. É atrás do singelo que se esconde o mais formidável segredo: uma pintura repleta de sexo, o princípio de um crime passional. Está diante dos nossos olhos, mas não somos capazes de ver. Toda obra de arte é inquieta, acúmulo de átomos furiosos, a questão é achar o ponto de tensão sobre o qual ela se funda. Na imagem, a mulher (nunca saberemos a cor de avelã dos seus olhos ou a leve ruga que surge sobre o lábio quando ela sorri) aponta para um papel, pensativa. O coque despretensioso revela que ela está em um lugar despojado, provavelmente em casa; a roupa branca assemelha-se a uma camisola, e o seio escapa por entre as dobras da veste, esquecido. Ela acabou de acordar, o corpo ainda guardando o suor da noite, ainda repleto de lascívia. Na cama, o amante contempla os braços carnudos, o queixo erguido, a mulher que esqueceu momentaneamente dele e vê como a luz se reflete na musa do seu ídolo. Sim, aí está o impossível, pois ele, Diego, dormiu com a musa inspiradora de outra pessoa. Cada musa pertence somente a um artista, assim como cada amor pertence a quem é atingido por ele; não existem dois amores iguais. Contudo, isso não foi obstáculo para Diego, que invadiu os devaneios alheios e levou para a cama o sonho de mulher que não era seu. Não amou aquele ser de carne, rugas e fraquezas tão humanas que conhecera, mas a imagem que o outro artista possuía dela. Enquanto o escultor tentava eternizar um sentimento, o pintor amante fartava-se na carne jovem da musa que não era sua. Não basta possuir um corpo, isso é para ignorantes. Não é suficiente exibir para o mundo a sua conquista, isso é para fracos. A verdadeira, imperdoável, traição é muito mais terrível: é dormir com o sonho de amor de outra pessoa.