Desde os primórdios da Humanidade, produzimos arte e a ela se reflete nossa sociedade. Isso se passou na pré-história, quando as pessoas pintavam em suas cavernas figuras de animais e seus caçadores – as pinturas rupestres. Passou-se também na Idade Média, período no qual surgiram muitas obras sacras em vias do poder oriundo da Igreja Católica. Naturalmente, hoje não é diferente. Filmes como Branco sai, preto fica ou Cidade de Deus, que refletem a violência no atual Brasil, seguem a mesmíssima lógica. A Moreninha, marco inicial do romance no Brasil, segue a orientação e expõe seus personagens a situações corriqueiras de uma burguesia que, à época, ascendia no Rio de Janeiro.
O romance se posicionou como molde de linguagem a outros escritos posteriores dentro do gênero. Em mais de um momento da narrativa, é possível perceber que o escritor conversa diretamente com o seu leitor, como: “[…]Um autor pode entrar em toda parte e, pois… Não, não, alto lá! no gabinete das moças… não senhor, no dos rapazes, ainda bem.[…]” Recursos como esse são comuns à obra de Machado de Assis, por exemplo, e é interessante apontá-los que logo na largada do gênero no país Joaquim Manuel de Macedo já o utilizava.
O diálogo citado acima faz referência, também, ao fato de o contrato ficcional não estar totalmente estabelecido socialmente, o que é apontado por Gallangher em Ficção. Lembremos de Gregório de Matos, ou como também ficou conhecido, “Boca do Inferno”. Até então (este viveu no século XVII), não havia a separação do escritor-pessoa para o eu-lírico, o que fez com que este fosse nomeado com tal apelido em decorrência de sua falta de decoro em excesso e repetitivamente. Isso explica, em parte, a demora em reconhecer-se que um romance, por mais que se valesse de lugares ou até situações e pessoas reais, trata-se de uma obra de ficção. Ou seja, a partir daqui, é impossível dizer, com absoluta certeza, que Joaquim Manuel de Macedo seja machista, por exemplo, embora tenhamos partes com tal conteúdo no livro, porque o escritor está coberto pelo pano ficcional.
Mesmo com a distância quase estabelecida, Macedo tenta afastar-se de possíveis “problemas” com seus leitores e omite, em diversas passagens do texto, nomes de lugares, inclusive lugares centrais à trama nos quais a história se passa quase em sua totalidade. Jamais sabemos o nome da ilha em que a avó de Felipe mora e que todos vão a um passeio na primeira parte do livro. Assim como, em outro trecho, o autor cita: “[…]”No dia 20 de julho de 18… na sala parlamentar da casa n… da “rua de… sendo testemunhas os estudantes[…]”. O receio que a sociedade possa, talvez, interpretar o que está escrito como verdade factual faz com que os escritores tenham certo pudor quando vão se referir a lugares existentes. Diferente do que faz Dostoiévski em Os irmãos Karamazóv, pois neste o autor utiliza a omissão de nomes de ruas e lugares apenas como recurso narrativo, já que a cidade é fictícia.
Há certo realismo fantástico em A Moreninha, seja pelo fato de Carolina e Augusto se conhecerem quando crianças e se encontrarem mais velhos e assim perpetuarem o amor prometido há anos; seja pela gruta e a ilha como um todo, funcionando miticamente como uma entidade, exatamente como a floresta em Terras do sem-fim ou em Mal dos trópicos. Dessa maneira, os anseios pessoais, neste caso a refutação do amor por Augusto, estaria subjugado à vontade maior da Ilha, que seria deixar apaixonados todos que a ela fossem. Em um anacronismo, seria possível comparar aos belos romances de Gabriel García Márquez, que também utilizou tal meio estilístico.
Em um mundo patriarcal por excelência, é interessante ver que Macedo coloca como heroína de seu romance uma mulher. Carolina é linda e morena, irreverente e divertida. Tal figura segue a lógica que Lukács propõe em A teoria do romance. Além de haver um abismo entre Carolina e algum herói clássico das epopeias, sua motivação é individual e não acarretará mudanças, de maneira alguma, à sua sociedade, como é possível perceber neste trecho: “[…]Para satisfazer as minhas vaidades de moça, somente para isso. Eu o ouvi gabar-se de que nenhuma mulher seria capaz de conservá-lo em amoroso enleio por mais de três dias, e desejei vingar a injúria feita ao meu sexo. Trabalhei, confesso que trabalhei por prendê-lo; fiz talvez mais do que devia, só para ter a glória de perguntar-lhe uma vez, como agora o faço: “Então, senhor, quem venceu: o homem ou a mulher?[…].”
Em outro viés, mas seguindo a ordem machista desde sempre vigente, há um trecho no romance que exemplifica a eterna e ridícula diferenciação entre dois tipos gerais de mulheres: as que são ou não para se casar. Dois amigos, heterossexuais, brancos, discutem sobre o tema:”[…] Pois ainda não observaste que o verdadeiro amor não se dá muito com os ares da cidade?… que por natureza e hábito, as nossas roceiras são mais constantes que as cidadoas?[…]” e assim segue-se um longo diálogo em que um tenta convencer o outro qual o tipo “adequado” que este deve arranjar caso procure o matrimônio. Obviamente, como apontado acima, é impossível dizer se este é o pensamento social de Macedo ou pura ficção. Hoje em dia, com mais maturidade dada pela História a nós, o magnífico filme A mãe e a puta, de Jean Eustache, de 1973, retoma tal tema que, como dito, é recorrente e parece longe de um fim que é, logicamente, necessário.
Trazendo à tona um casamento estruturado pura e simplesmente no amor, algo que contraria muito os parâmetros sociais até então concebidos socialmente, não há como deixar de pensar, também como Gallangher apontou em seu texto (a questão do casamento pó amor), que talvez o autor tente tornar aquilo que escreve uma verdade real, que sirva como base às mulheres e aos homens. Há, no romance, a tentativa de forjar uma sociedade tanto no âmbito ficcional como no real, assim como a realidade molda, por sua vez, o romance, ao fornecer situações, locais e personagens passíveis de serem postos dentro das narrativas. Em um ciclo sem fim, em “completa incompletude”, o romance abre-se em uma gama infinita de temas a serem retratados, o que de fato será feito ao longo dos anos por diversos autores e que teve, aqui, seu precursor em terras brasileiras.
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