“E eu ficava com um sentimento horrível de insegurança. Meu deus do céu, e se eles descobrirem que aquilo foi chutado, que aquilo foi uma bosta, que aquele negócio ficou ruim, que aquele negócio… Sabe? E se descobrirem isso? Eram as minhas gambiarras ali. Os fios expostos, sabe? Um pedaço de tela aparecendo”.
Cremos que a insegurança vem dos perdedores, aqueles que não conseguem nada por não se acharem suficientes para agradar o mundo. Mas, qual é o custo disso tudo? Quais são as consequências do medo? Devemos ficar presos ou enganar o máximo de pessoas possíveis, fingindo que temos confiança no que produzimos? Bom, alguns tentam, como é o caso da artista Laerte Coutinho.
Finalmente, chegou as telas da Netflix o primeiro documentário nacional: Laerte-se. O projeto conta a história de Laerte Coutinho, cartunista renomado, que há pouco tempo atrás se assumiu transgênero e luta diariamente para que o aceitem da forma que realmente é. Para algumas trans, Laerte é um exemplo e uma heroína, já outras discordam e não aprovam sua mudança. Muitas dizem que ela não é mulher por não ter peitos ou não ter feito a cirurgia de troca de sexo e Laerte discute um pouco sobre isso. Se ela se sente mulher assim, qual é o problema? Mas, ao todo, Laerte-se não fala apenas do movimento trans, mas acima de tudo trás um bonito diálogo de como se libertar e ser o que você realmente sente que é.
Apesar de perder o ritmo diversas vezes, se trata de um documentário valioso. Primeiro por abrir as portas a produções nacionais desse tipo na Netflix e segundo, por abordar um tema tão necessário como a transexualidade, dar voz a quem precisa falar, mostrando como se sente, como se descobriu e como se libertou. Laerte é muito e pouco conhecida ao mesmo tempo. Por um lado conhecemos a caturnista super talentosa que se descobriu transexual, mas por outro lado tudo isso que sabemos é bem “superficial”. Não sabemos quem é Laerte, como foi essa aceitação e são nesses pontos que o projeto acerta, e muito.
O problema muitas vezes de produções como essa é que em alguns casos soam falsas e até invasivas demais. Parece que os entrevistados poetizam mais frases bonitas do que realmente são sinceros, caso que não vemos aqui. No geral, para Laerte (que fugiu da produção por um tempo por não se sentir a vontade em falar de si mesma) tudo aquilo serviu como uma autoanalise. Quase como ir a um analista e ser provocado a soltar seus desejos e medos mais incompletos que foram arquivados em algum momento da vida por medo de serem solucionados.
O que mais temos de brilhante nesse documentário é o silêncio. Quando é muitas vezes questionada sobre os mais diversos temas, o silêncio aparece como um fantasma. Não por motivos de se recusar a responder, pelo contrário, é sentido que ela quer falar, mas muitas vezes viveu tanto sem pensar em tal assunto ou nunca ninguém parou para lhe perguntar tal coisa, que simplesmente e da forma mais humana possível, ela para, pensa e reflete. Tanto que chega a uma conclusão na hora, junto com Eliana, uma das diretoras e entrevistadora do projeto. Um grande mérito da produção é justamente aproveitar esses lapsos de silêncio para mostrar que Laerte, além de qualquer coisa, é um ser humano, do mais corajoso possível.
Como muitas vezes, mesmo refletindo, ela não sabe responder as tais perguntas, Laerte faz que sabe de melhor: produz tiras totalmente auto explicativas.
Vemos o nu mais sincero e dolorido de Laerte. Vemos como ela tirou coragem para se libertar depois da dor da perda do filho, a força de se assumir depois de a vida inteira se sentir pressionada, a coragem de enfrentar a família e pedir para que a aceitem e que a respeitem. Por mais que em diversos momentos ela repita que não sabe nem um pouco como é a dor que a maioria das trans sentem ao se aceitar, pois nunca sofreu na mão de ninguém ou muito menos foi retalhada de alguma forma, é perceptível que mesmo sendo mínimos, os problemas ainda estão ali. Mesmo que quietos, vemos os olhares falsos de familiares que se comportam civilizadamente por estarem em frente às câmeras, mas qual seria a reação e o tratamento se as mesmas não estivessem ali? Como quando ela leva sua filha ao altar ou quando encara seus pais já idosos?
O nu físico também é explorado, propositalmente, de forma linda e ao longo do documentário ela repete que ama o seu corpo, que não faria a troca de sexo por gostar da forma que é (inclusive diz que no máximo tiraria o saco escrotal, porque “saco é um saco”, segundo a mesma). Em uma cena final, os momentos que acontecem são justamente uma forma muito bonita de mostrar tudo que ela repetiu, mas de um jeito mais artístico, mostrando o seu corpo, projetando desejos de uma outra trans e, de certa forma, toda aquela analise que recebeu para ter chego em uma aceitação muito bonita, delicada e artística.
Tanto como artista, como ser humano, Laerte cria sem querer um novo verbo, sinônimo de liberdade e coragem. Como artista, mostra que mesmo cheio de incertezas, cria asas e voa até por onde não acredita ser possível,mas continua ali, sem medo de se expor ao sol. Mas, é como ser humano que Laerte brilha mais ainda, mostrando que liberdade vem de nós. Muitas vezes fingimos que não enxergamos nosso tempo passando, o tempo em que poderíamos tomar uma atitude, e as consequências disso pesam. Laerte-se enquanto é tempo, o uso do novo verbo é agora.
Fonte da imagem: Documentário Laerte-se (Netflix)