Literatura oral e certo bairrismo na literatura gaúcha

Quando estudamos literatura, de uma maneira geral, há um movimento quase que involuntário de associarmos o termo à escrita. O que soa engraçado, pois se pensamos em Homero (clássico autor lido mais de dois mil anos depois de ter colocado no papel Ilíada e Odisseia) na verdade se apoiou em mitos e lendas transmitidos oralmente ao longo dos anos. Vale lembrar também que sua autoria é questionável (algo típico da literatura oral). Goody, em “’Literatura’ oral”, traça um panorama de gêneros deste caminho de literatura, diferenciando-o da escrita e apontando para o contexto cultural e religioso como essencial no estudo de tais assuntos.

Ao construir o texto, o autor aponta para um fato interessante: as primeiras formas escritas se apoiam em gêneros orais (por exemplo, na escolha de temas). Outro ponto que nos gera um problema interessante é perceber que mesmo em comunidades letradas a comunicação é feita via oral. Se pensarmos no contexto brasileiro e seu alto índice de analfabetismo (pelo menos até as últimas décadas), esse fato é evidente. Nesses casos, como diferenciar a literatura escrita e oral? Me parece que, a princípio, é preciso pensá-las em conjunto.

Goody traz um ponto chave para pensarmos a literatura oral. Em suas palavras: “cada gênero tem seu contexto, lugar, tempo, artista e objetivos”. Aqui no Rio Grande do Sul, um marco em nossa literatura é, sem dúvida, Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto. Ali há um claro movimento de volta à oralidade, seja pelo personagem-narrador Blau Nunes, seja por recuperar mitos e lendas da região. Seu objetivo é trazer à tona a cultura gauchesca do pampa que vai se apagando. Outro fato interessante daqui do sul é a composição da canção “Negrinho do Pastoreio”, de Barbosa Lessa, retomando a lenda posta no papel por Simões Lopes Neto. Seguindo as palavras de Goody e assim fazendo uma análise: por volta da década de 1930/40, período no qual a canção popular se inclina a um viés mais regional; seu objetivo é parecido com o autor de Contos Gauchescos – botar em circulação novamente uma lenda tradicional dessas terras. Mas o que me parece mais interessante é pensar em uma possível indissociabilidade entre literatura oral e escrita.

Antônio Chimango, poema de Ramiro Barcellos sob o pseudônimo de Amaro Juvenal é outro ótimo exemplo que sustenta a tese de Goody. O poema foi feito como uma sátira a um adversário político, Borges de Medeiros (hoje são nomes de ruas, mas na época eram figuras importantes da política porto-alegrense e gaúcha). O contexto e seu objetivo estão dados. A forma do poema é importante também para seus fins: é um heptassílabo (ou redondilha maior) com rimas constantes e curtas, naturalmente, que facilitam sua declamação (o objetivo não era ser impresso e distribuído, mas sim lido em praça pública).

A tensão de classe que é percebida ao estudar a literatura oral e sua diferença com a escrita é um ponto importante e revelador. Goody, de inicio, aponta para a diferenciação entre “literatura popular oral” e ”escrita da elite”. No Brasil, a canção entre o início do século XX até meados da década de 1970 (depois, na década de 1990, a canção retoma em parte este papel, principalmente na voz do rap), exerce um papel fundamental de formação de cidadãos, de informação e de cultura (próprio de determinados locais, hábitos e costumes específicos). Isso se deve ao fato de a cultura letrada ser restrita a uma elite. A canção no Brasil é formativa.

Nos pontos acima, é possível verificar uma mudança do que se entendia por literatura oral, mas creio que ainda sim estamos neste âmbito. Com o perdão do bairrismo, penso ter sido possível analisar brevemente alguns frutos da literatura oral, mesmo em modificações, em contexto brasileiro (e apoiadas, agora, em uma estrutura letrada). Desse modo, Goody acerta em julgar essencial o contexto cultural e religioso, além do recorte classista, já que a literatura, seja oral ou escrita, caminha junto ao processo social.

Rodrigo Mendes

Referência:

GOODY. “‘Literatura’ oral”.

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