“O jardim de cimento”, filme de Andrew Birkin, homônimo ao romance de Ian McEwan, trata mesmo de nos colocar a questão fundamental sobre o existir: quem somos nós? Essa pergunta existencial perpassa todo o filme questionando a antropologia que afirma ser a proibição do incesto como início do vínculo social. Esse questionamento que gravita entre formação sexual, amorosa, sentimental e psicológica norteia nosso olhar sobre essa obra.
É sabido que o superego é construído nas crianças por influência dos pais. Assim, até a adolescência, essencialmente formam-se alguns referenciais ideológicos que irão conduzir a pessoa, podendo ser tomado como dogma e nunca mais discutido e ou também, em pessoas mais afeitas à reflexão, ser discutida em divãs, salas de aula e mesas de bar – até mesmo na presença de um livro essas heranças podem ser discutidas.
O enredo do filme é simples: uma família patriarcal que é dissolvida pela morte prematura dos pais. Há quatro filhos que a partir de então irão encenar essa tragédia. Não falamos tragédia aqui apenas por alusão há algo que acontece de mal. Não. A questão é mais profunda. Pois há na relação de Julie e Jack uma das leituras feitas na tragédia Antígona. Na qual se supõe que Antígona é apaixonada por seu irmão Polinices. Assim como se especula sobre o amor de Florbela Espanca por seu irmão Apeles.
Há mais um tom de tragédia quando ao fim do filme os irmãos encenam uma clara expressão de incesto e no diálogo, Julie pergunta a Jack se ele considerava aquilo tudo que fizeram algo errado. Ele responde que considera aquilo natural. Bom, parece que a chave filosófica e psi do filme estaria aqui. Não há superego ali, o id comanda a trama. Quem somos nós?
Em primeiro, há uma cena em que o pai lança cimento sobre as flores do jardim. Essa cena é emblemática, pois isso mostra que ali há uma cor, a cinza. Ou seja, a ausência de cor com que muitas famílias tratam os sonhos das crianças, plurais e coloridas. O mesmo cimento que enterra as flores enterra a mãe. As crianças lançam tudo que é flor para o abismo do cinza, do cimento. Depois vivem a tragédia de nunca mais se desvencilharem desse cimento. De onde brotam formigas. A vida se foi. As cores também. A ausência de referências e uma discussão sobre a natureza humana ficam claras quando há um diálogo em que o irmão mais novo decide se vestir como mulher.
Afinal de contas, se na primeira vez em que tocam a relação humana não há em que se amparar, em nenhuma ideologia, em nenhum dogma, nenhuma paradigma, o que seria homem? E mulher? Roupas? Isso talvez ajude a desmascarar preconceitos acerca de gênero e questões sexuais. Somos apenas aquilo que podemos ser. Não há determinação natural ou genética quando falamos de humanos. Somos história e aquilo que ela nos permite ser.
Falamos isso, pois quando os irmãos se relacionam incestuosamente e o outro irmão se veste como mulher, fica claro que não se trata apenas de uma discussão sobre estrutura familiar. A questão é mais profunda. Trata-se de afirmar que dentro daquela casa, cercada de cimento, dúvidas e descobrimentos, as crianças criaram seu próprio mundo. Com seus valores peculiares. Não deixaram de ser humanos por isso. Não desrespeitaram nenhuma lei natural, simplesmente porque ela não existe. Esse existir cru e culturalmente construído nos chama a atenção. Sartre nos diria que estaríamos desde sempre condenados à nossa liberdade. Assim compuseram sua trama. Órfãos de pais. Pais de seu próprio destino. Tragicamente tomados por aquilo que lhes era inevitável. Como o é a tragédia mesma. Nada além do que aquilo que nos toma, não nos devolve e sequer pergunta se pode entrar, avassala. Da mesma maneira como foram tomados os irmãos a partir da morte da mãe e do pai.