Uma obra não pode ser responsabilizada junto ao seu autor. Mesmo considerando o elo que os une, tratam-se de coisas distintas. Cria e criador se situam num mesmo âmbito quando considerado o processo de criação. Durante o ato da escrita, há algo que os envolve, que os junta, que os torna, em certo sentido, uma coisa só. Mas e depois disso? Concluída a obra, finalizado o livro, encerrada a escrita, pronto o trabalho, poderia se dizer que a obra pertence ao autor? Lembro aqui de Fernando Pessoa: “pertencer – eis a banalidade”. Nesse viés, é possível sustentar que a obra pertence ao autor?
Indaga-se aqui num sentido mais profundo que aquele em que se observa o responsável pela criação de uma dada obra. Não se pergunta quem é o autor – no sentido de se estabelecer o pertencimento enquanto crédito dado àquele responsável pelo processo criativo ou enquanto aquela relação única que ocorre no ato da escrita. A questão que se propõe a problematizar é se há uma simbiose entre livro e autor.
O escritor e sua obra são uma só coisa?
Conforme já se adiantou, defende-se que a obra não é o autor, assim como o autor não é a sua obra. Não há como dizer que livro e autor são uma mesma coisa, uma vez que isso ensejaria na atribuição de responsabilidades de um pelo outro.
Há poucos dias, o escritor Gustavo Melo Czekster compartilhou em sua página pessoal no Facebook uma situação incômoda que vivenciou. Em certa parte de seu relato, Gustavo mencionou que o livro não tem culpa pelo autor. Foi essa passagem que motivou a presente exposição singela, questionando-se essa frase (“o livro não tem culpa pelo autor”) a partir dela mesma, manifestando-se aqui total concordância com sua defesa.
Uma obra tocante, perspicaz, que irrompa com os sentidos do leitor, pode ter como autor uma pessoa arrogante, mesquinha, até mesmo desprezível. Em sentido inverso, um autor atraente, fraterno, receptível, interessante, pode acabar escrevendo um livro intragável. E isso pode ou não ser uma regra constante no processo de escrita de cada um desses tipos de autores. Se a generalização está sujeita à muitos possíveis equívocos, a confusão feita entre obra e autor, interpretando-os como uma coisa só, enseja em erros ainda maiores.
A filosofia possui exemplos do perigo em se confundir obra com autor, assim como a literatura e várias outras áreas. Isso pode ser observado no fato de Heidegger ter se envolvido com o nazismo e essa questão costumar ser ignorada por muitos, o que pode vir a ser uma coisa boa, uma vez que com isso pelo menos se impossibilita que se faça um indevido e equivocado juízo crítico de sua produção filosófica.
Não se quer dizer que reflexos do autor não podem estar presentes em suas obras. Alguns livros são “a cara” do autor, pode-se assim dizer. Mas esse fenômeno ocorre quando há uma permissividade – reconhecida ou não. Assim como o autor não pode ser julgado por sua obra, a obra não pode ser julgada por seu autor. Em não se tratando de circunstâncias que constituam exceções ao âmbito em que a análise aqui feita se situe, obra e autor devem ser vistos isoladamente. O livro não merece deixar de ser lido pelo fato de seu autor ser pedante, valendo essa regra mesmo quando o escritor for um completo imbecil – fosse assim, quantas obras maravilhosas não teriam deixado de ser lidas e conhecidas em decorrência do julgo contra seus autores?
Desapontamentos fazem parte do processo de conhecer o autor. Há surpresas boas e ruins, isoladas ou cumulativamente presentes, nas situações em que o leitor tem a oportunidade de conhecer o autor daquele livro lido que ganhou sua atenção. Isso vale em todo e qualquer ambiente, de modo que não seria diferente na literatura. Claro que no campo da escrita essa ideia recebe contornos mais apaixonados, afinal, nenhum leitor pretende ser desapontado pela postura dos autores que lê. É por isso que há quem prefira evitar conhecer o autor a fim de que determinadas questões alheias à obra influenciem na própria leitura. Entretanto, no campo literário, costuma prevalecer aquela vontade de saber, pelo menos um pouco, sobre a vida do responsável pela produção da obra. E isso nada tem de ruim. Porém, deve estar o leitor preparado para que em caso de surpresas terríveis e desapontamentos, obra e escritor não podem ser confundidos, já que o livro não tem culpa pelo autor.
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