A visão do que é a Literatura Brasileira está sendo arguida hoje em dia em seus pressupostos. Do que se conformou como cânone literário brasileiro, pouco ou nenhum espaço tem autores e autoras negras, mulheres em geral, outros gêneros literários ou semi-literários como a canção e assim por diante; a própria crônica só a partir dos anos 1970/80 passou a ser estudada como literatura. Contamos uma história da literatura brasileira excludente e passou da hora de arejarmos o cânone, seja com (re)descobertas, seja contrapondo conceitos de literatura ultrapassados e carregados de violência, seja de ordem racial, de gênero, classe etc.
Até aqui a ideia é a de que, em uma sociedade patriarcal e que manteve a escravização por quase 400 anos – ao menos a institucional, já que se ouvimos Racionais MC’s há ainda menções ao período ou a suas consequências – como a sociedade brasileira fez, é fácil perceber o apagamento de mulheres escritoras, mais ainda de mulheres negras escritores, como Carolina de Jesus e Maria Firmina dos Reis. Para além dessas construções assimétricas de ordens diversas do que compõem o que chamamos literatura brasileira, há ainda outro ponto de cânone importante de ser mencionado. Me refiro ao poder simbólico alcançado pelos modernistas de 1922 e de como sua visão colaborou e segue colaborando para que contemos uma história literária canônica. O poder simbólico e material conquistado por eles (cujo exemplo da criação da USP em 1936 é sintomático) deu aos modernistas, por exemplo, o direito de chamar os escritores da virada do século 19 para o 20 de pré-modernistas, o que por várias razões é um absurdo conceitual e que demonstra uma correlação assimétrica de forças entre os paulistas e o resto do Brasil (um exemplo rápido é uma breve comparação de Lima Barreto e Simões Lopes Neto, que espantosamente diferentes entre si, com objetivos igualmente diferentes, passam a ser caracterizados uniformemente por aquilo que eles não têm, já que o prefixo pré significa dizer que há algo neles que visa antecipar a vanguarda representada pelos modernistas, mas marcando sua condição de inferiores já que não alcançaram a tal ruptura tão idealizada alguns anos depois). Esse último argumento é do professor Luís Augusto Fischer em “Sobre o vigência do regionalismo no Brasil”.
O debate sobre cânone é largo*, mas cabe ao presente trabalho alguma informação a respeito disso, pois trabalharemos com obras (na íntegra ou em partes), à exceção de Machado de Assis, não-canônicas. A ideia é alinhar literária e historicamente as obras Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (1859), Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1881), Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus (1960) e Sobrevivendo no Inferno, disco de Racionais MC’s (1997). O assunto serve, também, já que o alinhamento prevê, como ponto de chegada, o disco do Racionais, ou seja, a canção será trabalhada como literatura. A canção, por ser um gênero acessível a iletrados tanto para compor como para fruir, é de suma importância no contexto social brasileiro, já que este desde sempre manteve uma sociedade desigual, criando barreiras entre pobres e ricos, sendo um exemplo o analfabetismo. Sendo assim, o papel da canção é muito importante para a formação da sensibilidade e reflexão crítica dos cidadãos brasileiros ao longo dos anos. O último debate sobre o cânone envolve as duas mulheres escritoras: Maria Firmina, por ser negra e provavelmente descendente de escravizados – sofrendo portanto o racismo estrutural brasileiro, além do machismo por ser mulher – e tendo escrito sobre a abolição antes de Castro Alves, foi colocada em um lugar de esquecimento gigantesco, tendo sido redescoberta muitos anos depois e, agora, com o ingresso de seu romance às leituras obrigatórias do vestibular da UFRGS, voltou ao primeiro plano do debate literário, acadêmico ou não (devo esse argumento a Evelin Vigil em conversa sobre Úrsula); Carolina de Jesus é outro exemplo, pela mesma razão de Maria Firmina, quando foi incluída para as leituras da UFRGS, mas também por ser seu livro mais conhecido um diário. O debate então sobre ficção vem à tona e junta-se a eufemismos racistas para desqualificar sua literatura. O que devemos nos perguntar é como olhar para a literatura brasileira tendo em vista uma forma como essa. Citamos antes Euclides da Cunha e seu Os Sertões, o qual, creio eu, nunca teve seu estatuto literário posto em xeque.
Ao colocar justapostos essas quatro obras, todas de autoras/es negras/os, pensamos no papel do negro na sociedade brasileira; como aparece e quais as implicações da escravização no processo social e nas formas literárias em questão; o porquê de alinhar obras com mais de um século de diferença e o que as une. Aqui entra também as aquarelas de Debret em período que esteve no Brasil e que dialogam fortemente com o tema da escravização urbana, partindo de um ponto de vista não provinciano e enxergando tensões locais mas também universais dos problemas expostos nas obras. Olhando para tudo isso em um olhar panorâmico, dá pra perceber que a literatura muitas vezes funciona como denúncia política, às vezes sofisticada como em Machado de Assis, porque a posição do narrador em Memórias Póstumas diz sobre a classe a qual pertence (classe proprietária de terras e de escravizados); às vezes inverossímil como em Úrsula, quando há uma equiparação linguística entre negros escravizados e brancos proprietários, impossível materialmente mas conjugada simbolicamente no espaço literário visando uma intervenção no debate público; em Quarto de Despejo, quando a velocidade da narração de Carolina diz sobre o estado de exceção perpétuo que se encontram os moradores de periferias – no caso urbanas – do país; e em Racionais, ponto final da comparação e que encarna o período de alta do neoliberalismo no país, com alta de desemprego e desigualdade social – no seu caso, São Paulo -, e que em sua dicção demonstra toda raiva acumulada por essa violência secular que podemos ver já lá em Maria Firmina, para nossos fins, mas que tem início em 1500 com a invasão portuguesa e a colonização subsequente.
A história da literatura brasileira precisa urgentemente de um olhar mais crítico, no qual possamos ver a complexidade do processo social brasileiro em sua integridade, e isso inclui olhar para a canção, para as escritores historicamente apagadas, e assim entender de fato o país quando tematizado pelas obras de arte.
Rodrigo Mendes
Referências:
ASSIS, Eduardo de Assis. “Desconstrução da razão negra ocidental”.
AZEVEDO, Luiz Maurício. “Úrsula, de Maria Firmina dos Reis”.
FISCHER, Luís Augusto. Literatura Brasileira – modos de usar.
__________. “Sobre a vigência do regionalismo no Brasil”.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas.
RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no Inferno.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula.
REPÓRTER POPULAR. “Encontro Literário nas Periferias discute a Literatura Negro-Brasileira”. Disponível em: ”<http://reporterpopular.com.br/encontro-literario-nas-periferias-discute-a-literatura-negro-brasileira/> Acesso em 28/11/18.