A questão do tempo em ‘Para sempre Alice’ de Richard Glatzer e Wash Westmoreland

“Alice estava começando a ficar cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira, e de não ter nada que fazer; espiara uma ou duas vezes o livro que estava lendo, mas não tinha figuras nem diálogos, “e de que ser um livro”, pensou Alice, “sem figuras nem diálogos?”. Por vezes a existência torna-se de fato um questionamento de “Alice nos País das Maravilhas”. De que valeria uma vida sem diálogos. Sem figuras. É possível uma vida sem figuras? Ainda seríamos humanos sem não criássemos figuras? O livro no qual inscrevemos nossa estória pode existir sem a alteridade que nos apresenta o diálogo? Há uma alteridade que assombra a existência antes do eu que a tudo deseja criar. Mas e se acaso esse eu iniciasse um processo de apagamento. Ou seja, aqui resta uma pergunta inicial imensa acerca do que é o humano mesmo. Ora, se acompanharmos o pensamento moderno que se funda em uma egologia do eu cartesiano fundante do mundo, percebemos que sem o eu  o mundo sequer existe. O eu posso. Eu faço. Construtor do tempo. E ao mesmo tempo, esquecedor do tempo, aquele que na conjugação do verbo na primeira pessoa tem o local inaugural do humano. O tempo seria, portanto, o tempo do eu. Aquele do qual falo. O que simbolizo. O que narro. Aquele que invento. Que minto. Que mato. Assim, o outro estaria de uma vez por todas como coadjuvante. Peça do meu quebra cabeças do qual me desvencilho quando quiser. Peça da minha linguagem, enfim, dos meus jogos de linguagem.

Talvez uma das questões que esteja a permear o filme, “Para sempre Alice” de  Richard Glatzer e Wash Westmoreland, além do problema do Alzheimer, seja em que tipo de pensamento e de construção social lemos essa enfermidade. Pois, no filme, Alice (Julianne Moore) é uma professora extremamente bem sucedida, possui uma família com uma dose fílmica de dissonâncias e é diagnosticada com um tipo raríssimo de Alzheimer precoce. Essa construção nos indica, portanto, um caminho melancólico, uma vez que a professora extremamente perspicaz com as palavras se perde agora inclusive em relação aos nomes próprios que a cercam. Bom, a reflexão que gostaríamos de aqui estabelecer, para além da indiscutível gravidade desse mal, é, de fato, a maneira como o humano se lê na contemporaneidade.

É mesmo interessante perceber o agravamento de males como esses nos dias de hoje. Mas temos a impressão de que a maneira como lidamos com o tempo, o outro nele, e nossas reações ante a existência estão enredadas diretamente nisso. Sartre disse certa vez que não importa o que os outros fizeram de ti, mas o que você faz com que os outros fazem de ti. Assim, se acaso deixássemos um pouco esse pensamento moderno que se anuncia desde Sheakspeare e pensássemos mais como Lévinas. Se o outro, esse absoluto e inalienável e infinito nos conduzisse, se a ética, antes da razão nos tomasse. Ainda assim, o Alzheimer seria visto da mesma maneira? Ora, em outro filme, “El hijo de la novia”, também há um caso desses, e quando o marido que todos os dias visita a esposa na casa de repouso é repreendido por alguém que o questiona. “Mas porque você vem todos os dias se ela nunca se lembra?” A resposta é simples. O tempo ali não é  dele, mas o tempo dela. Que a cada vez sente que é algo novo. Assim, como a criança nietzschiana, não carrega o peso da história em seus ombros, permitindo-se amar, mesmo que por alguns segundos, eterna e infinitamente finito. O tempo daquelas visagens talvez seja a eternidade de que falou Vinícius de Morais quando disse do amor. Ao mesmo tempo, se o tempo não for mais o do eu, se a valsa for conduzida pelo tempo do outro, talvez essa doença horrível, que nos faz esquecer, de alguma maneira, nos reavive a lembrança do amor por um dia, um minuto ou apenas segundos.

A mudança de pensamento pela ética que nos propõe Emmanuel Lévinas talvez nos apresente um novo tempo. Não aquele do eu que inclusive usa a memória para acumular-se a si. Mas um tempo outro. Um tempo do outro. No qual as memórias devam ser sempre trazidas à tona. Em jeito de um “eis-me aqui”. Na face do esquecimento do eu pode habitar o outro que carece zelo, posto que nossa própria possibilidade de amar. Alice quando deixou o mundo por falta de diálogo, por falta de figuras, talvez quisesse nos dizer que por detrás do espelho pode haver mais mundo que nossa própria face pode ver.

 

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