O multiculturalismo surge em um contexto de esgarçamento político pelo maio de 68 e pela descolonização de África e Ásia. Pressupõe um mundo globalizado e de múltiplos atravessamentos culturais que compõe as culturas e que engendram as relações multiculturais. Se pauta pela materialidade histórica e rejeita os essencialismos que são, no fundo, o que Spyvak traz como violência epistêmica.
A teoria multicultural age em cima do hibridismo, que é a marca da sociedade mundial hoje pós-globalização. O imperialismo norte-americano influencia quase todas sociedades do mundo afora pelo poder que adquiriu ao longo dos anos. A Idade Moderna, com marco importante das grandes navegações, não foi senão um ensaio de globalização e de imperialismo no qual podemos ver as imbricações e atravessamentos das culturas de maneira muito nítida e com reflexos contemporâneos. O racismo, que parte do eurocentrismo etnocêntrico,é uma forma essencialização do Outro como inferior, procedimento padrão na colonização das Américas, por exemplo.
Stuart Hall e Paul Gilroy (este comentarei brevemente depois, com um aspecto mais racial) baseiam-se, em suma, na dinâmica histórica das culturas, o que contraria uma posição essencialista (que de resto é europeia) e pauta-se pelo hibridismo, que é uma chave contra o racismo engendrado pela ideia de essência. A Europa, vista dessa forma, se coloca como o grau zero da diferença, e de novo Spyvak se faz necessária porque a Europa se coloca nessa posição pelas razões históricas de invasões e conquistas subjugadoras de povos e erige para si o lugar da não diferença, do universal, o que é profundamente racista.
Paul Gilroy no primeiro capítulo de O atlântico negro mostra como os povos tradicionais – um exemplo daqui, os ameríndios – “entram” na sociedade moderna marcados pela diferença, são o Outro, subjugados à cultura ocidental, a cultura. O atlântico negro postulado diz respeito a uma dialética racista, híbrida, diferencial e relacional entre culturas. Se constitui a partir da escravização africana pelos povos europeus; uma identidade (o termo pode ser problemático se o interpretarmos como essência) que é marcada e forjada pela opressão, pela morte, pelo genocídio. É uma lógica cultural autêntica, moderna, de uma realidade transnacional diaspórica. Uma cultura negra que por ser gerada nestas condições é em si resistência; uma ontologia relacional que o autor enxerga o Hip hop como uma possível síntese. O rap, a forma musical do movimento cultural Hip hop, seria uma forma de identidade transnacional dos povos negros, que nasce da opressão e é compartilhado em todos lugares nos quais o racismo impera, ou seja, quase todo senão todo o mundo. É uma coisa interessante porque, falando de estética, não há o que se costuma chamar de aclimatação das formas, justamente por uma ironia cruel de nascer do genocídio encontra eco nos diversos lugares nos quais a prática extermínio da população negra – e pobre – é o tratamento comum a essas populações, como no Brasil. E mais interessante ainda é que o Racionais MC’s, grupo de rap brasileiro postula algo semelhante a isso: na música “Periferia é periferia (em qualquer lugar)” do disco Sobrevivendo no Inferno, como o próprio nome já indica, é uma ideia de junção dos irmãos negros pobres oprimidos pelos Estados racistas ao redor do país, mas junto a Gilroy temos um patamar muito maior de união do povo negro (salvo engano é o que o pan-africanismo afrocentrado postula). A união, formalmente, se dá pela utilização do sampler, que é a ocupação de uma base musical – já existente – com uma letra nova, como se dá em quase todas as músicas do disco citado. É uma união que só se completa, neste caso, no Brasil, mas que a partir do Racionais é um exemplo importante.
Rodrigo Mendes
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