O texto não é órfão

Alguns dizem que o texto, quando nasce, ganha vida própria, não dependendo mais de seu criador para nada, de modo que deve ser lido a partir do próprio contexto em que está situado. O texto pelo próprio texto a partir do texto. É a morte declarada do autor. Concorde-se ou não com a visão barthesiana da coisa, em maior ou menor grau, tem-se como inegável a concepção do texto como o fator a partir do qual a escrita é criada. Ele, o texto, é criado a partir do pensar de alguém, pelas mãos do autor que o digitou ou o escreveu numa folha de papel. É dizer que mesmo quando se busca desvincular o texto do autor, não se nega que foi um alguém que o produziu. Para fins de uma certa análise proposta, de uma interpretação pretendida, de uma leitura realizada, pode até se afastar a figura do autor. Mas isso não significa considerar o texto como apócrifo fosse. Há sempre um responsável pelo texto – mesmo que esteja esse na penumbra.

Por mais que o texto possa passar a andar com as próprias pernas depois de lançado ao mundo – como muito acontece –, a marca do autor, o seu responsável, fica nele presente. O texto possui uma origem, uma base, um início primevo que se estabelece antes mesmo de ser texto. O autor o cria, dá vida, erige, estabelece, forma, lança, molda. Fica a marca, portanto. O rastro se faz presente. O liame, que pode ou não ser invisível, sempre existe entre o autor e o texto. Assim, não há como ignorar a figura do criador, de modo que é complicado sustentar a possibilidade de um texto não possuir um pai ou uma mãe.

Genitor ou genitora como aquele que concebe. O responsável pelo texto, que o cria, está sempre intimamente ligado ao resultado de sua concepção. A prole resulta de algo, e esse algo não deixa de existir mesmo quando tem a sua morte declarada. Há sempre algo que fica, pois constituiu e permanece constituindo. A essência não está no autor, pois reside no próprio texto, mas é a partir do criador que o cerne metafísico que se situa (in)alcançável no interior do texto recebe condições de existir.

Dito tudo isso, vocifera-se: o texto sempre tem um autor.

Em tendo o texto um criador, essa autoria merece ser apontada, estar presente, ser mencionada. O texto não existe por si só. Não é criado espontaneamente. Daí que, por uma questão de lhaneza, de justiça, de reconhecimento, enfim, de todo e qualquer fator justificante que preceitue a necessidade de apontamento da autoria do texto, o nome do responsável pela produção daquela escrita deve ser mencionado.

Textos sem um autor determinado ou apócrifos existem, mas quando assim são, há uma razão que explica o fato de a autoria ter se tornado desconhecida. Escritos antigos, frases de efeito, brocardos e alguns outros exemplos podem se enquadrar como formas de texto cuja autoria se perde com o tempo ou por sua forma de circulação. Porém, há situações em que o engodo ou o descuido injustificado pode se fazer presente. O compartilhamento de um texto sem que a autoria seja apontada pode ensejar na criação de um problema sério – um texto que possui autoria determinada se transforma num texto apócrifo, recebendo a pecha da assinatura de “autoria desconhecida”, ou ainda, pior, estando apto para ser objeto de plágio, quando um novo, mal intencionado e ardiloso indivíduo avoca fraudulosamente a autoria para si.

Natália Nodari, autora responsável pelo blog O Segundo Cu, teve, por exemplo, a autoria do seu próprio texto questionada recentemente. Um de seus escritos foi citado num determinado site sem que a autoria lhe fosse atribuída. Entrou no vasto campo da “autoria desconhecida” – onde tudo cabe, mesmo coisas que não deveriam ali estar. Ao tomar conhecimento (por sorte, já que quando os textos são solapados mediante a morte matada do seu autor, muitas vezes o responsável pela autoria sequer fica sabendo que a sua cria lhe foi arrebatada e caiu no campo dos apócrifos) da situação, contatou o responsável por aquele site que mencionava um texto seu (mas como anônimo fosse), salientando que se tratava da autora do escrito, pelo que foi questionada. Uma certidão de nascimento foi exigida para que a filiação autora-texto fosse comprovada a fim de que o crédito devido lhe fosse dado. A autoria foi questionada – e esse questionamento foi feito perante a própria autora do escrito. Eis um dos perigos possíveis desse fenômeno de não se respeitar a filiação do texto. Por isso que aqui se pontua que todo cuidado é pouco e a atenção deve ser redobrada quando se trata de “passar um texto para frente”. O autor merece esse respeito.

O texto não é órfão. O texto nunca é órfão. Há sempre o trilhar da gênese que o leva até a autoria. Pelo reconhecimento e respeito à maternidade e paternidade do texto, portanto.


Fonte da imagem:

https://img.cancaonova.com/cnimages/canais/uploads/sites/6/2011/09/formacao_o-que-sao-livros-apocrifos.jpg


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