O ar revolto do mar, o conflito da água com o céu, a expansividade das nuvens pesadas enunciando a chuva. E o repouso do público cativo na areia, desse novo modo de vida, de buscar a praia como descanso. Eugène Boudin foi cativado, entre seus trabalhos, pela mudança de atmosfera das praias e, arranjando-se na técnica impressionista, registrou os instantes de luz entre areia e mar.
Nascido na Normandia em 1824, Boudin conviveu com o pai marinheiro em uma das primeiras embarcações a vapor que corriam entre Le Havre e Honfleur. Essa experiência vendo o mar é importante como parte de sua trajetória e no encantamento pelos fenômenos. Discípulo de Corot, há um alinhamento entre as ideias de ambos quando consideramos os seus registros. Corot disse “submetamo-nos à nossa primeira impressão. Se realmente nos comovermos, a sinceridade da nossa emoção será transmitida a outros”. Boudin, por sua vez, falou a um aluno “a impressão é obtida em um instante, mas deve ser condensada seguindo as regras da arte, ou melhor, o seu próprio sentimento, e isso é a coisa mais difícil – terminar uma pintura sem estragar nada”. Essa conjunção da fala dos dois revela a base estrutural da técnica impressionista, registrar a atmosfera e a sensação em conjunto na observação de uma cena na vida ordinária.
Prenunciava-se, com Boudin, as tendências impressionistas. Corot o chamou de “o rei dos céus”. Monet encontrou nele, então, o frescor da sensação que viria a ser o seu enfoque anos depois, por ter trabalhado quando adolescente ao lado de Boudin. O pintor costumava fazer esboços, no verão, a partir de suas viagens. E os terminava em seu estúdio em Paris, durante o inverno. Ele chegou a dizer que “tudo o que é pintado diretamente e no local sempre tem uma força, um poder, uma vivacidade de toque que não se pode recuperar no estúdio”. O hábito dele era ficar entre a Normandia e a Bretanha, uma costa que inspirou igualmente Monet em suas cenas plein air de montanhas e gramados no limite em face ao mar. Embora Boudin tenha feito também pinturas voltadas às paisagens do interior, cenas de camponeses e naturezas-mortas, o fascínio exercido pelo litoral, pelos espaços da praia e do mar, foi um forte elemento entre seus quadros.
Em 1862, ele começou a pintar o amontoado de turistas que passavam férias nos resorts de praia da Normandia. Essas imagens, as mais conhecidas, eram muito comercializadas, até mesmo indicando que a pintura passa a ser parte de imagens de difusão de uma classe, por gravuras e fotos mais acessíveis do que o quadro.
A série de quadros na praia revela o trabalho concentrado, de Boudin, em representar a atmosfera e as alterações de luz em um mesmo espaço diante dos olhos. A Chegada da Tempestade (Approaching Storm), quadro de 1864, é o exemplo claro de uma obra que transmite o sentimento da observação do artista. A escolha em aplicar uma sombra que se expande pela areia, onde as pessoas se abrigam, o vento que levanta a borda da saia de uma dama, já abrigada com um casaco preto. Tudo anuncia o temor da tempestade, a queda de temperatura, o instante exato da transição não apenas de um clima, mas de um humor: da celebração e do lazer ao recolhimento quase melancólico. No céu, as nuvens são muito cinzas e maciças, e o sentimento claustrofóbico de ameaça preenche o quadro inteiro, juntamente com a cor.
Parece que o pincel acaba sendo regido pelo sentimento da impressão observada. Para verificar as alterações na praia, podemos ver o trabalho de cor em outros quadros de Boudin. Em Cena de praia (Beach Scene, 1862), o céu é limpo, vemos mais fatos acontecendo, como uma dama andando com a sombrinha, pessoas sentadas, um rapaz brincando com o cachorro. A tranquilidade está no sentimento de espera e fluidez no tempo.

Já Praia em Villerville (The Beach at Villerville, 1864) anuncia o crepúsculo, com o cinza já querendo tomar o espaço do laranja. As pessoas se agrupam, nos últimos instantes de descanso antes de ir embora de mais um passeio. Damas andam e conversam, venta um pouco, o cachorro contempla esperando a multidão decidir partir. A sensação que o quadro dá é de apreciação antes do fim, e não de uma interrupção pela tempestade. Outra versão semelhante é Figuras na praia em Trouville (Figures on the Beach in Trouville, 1869), onde os personagens estão enfileirados, em vez de amontoados. Parecem olhar o sol ir embora, e o céu está mais laranja e adocicado.


Para comparar com uma obra feita anos depois, em 1885, o quadro Mares tempestuosos (Rough Seas) a cena já ganha uma pincelada mais agressiva, o cinza tem mais frescor. Parece tão molhado quanto a própria tempestade. As ondas são de um branco pouco diluído, e tudo leva a parecer que testemunhamos a aflição do barco no perigo marítimo.

Nota-se o projeto de Boudin em se aperfeiçoar pela técnica impressionista. De forma quase humilde, o pintor chegou a afirmar: “posso muito bem ter tido alguma pequena influência sobre o movimento que levou os pintores a estudarem a luz do dia real e a expressar os aspectos mutáveis do céu com a máxima sinceridade”. Com isso, Eugène Boudin reinou nos céus mutáveis da impressão para que outros, como Monet, seguissem observando o fenômeno nas cores fugidias do mundo.
Referências bibliográficas
SCHAPIRO, Meyer. Impressionismo: reflexões e percepções. Tradução: Ana Luiza Dantas Borges. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
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