OBRA DE ARTE DA SEMANA | Lixadores de chão, de Gustave Caillebotte

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Um vai e vem entre as manchas do chão e o brilho da madeira. Gestos coreografados com ares de antiguidade. Lixadores de chão (Raboteurs de parquet, 1875), de Gustave Caillebotte, leva aos olhos a concentração numa cena cotidiana da classe trabalhadora, e torna documentada a atividade vista como comum na vida parisiense.

Gustave Caillebotte estudou em Bonnat, e se formou por um treinamento acadêmico em atelier, tendo a Antiguidade e a tradição como base.  Segundo o texto do Museu D’Orsay, o quadro evidencia essa preocupação com a técnica, “a perspectiva, acentuada pelo ângulo alto e pelo alinhamento das tábuas do piso, cumpre a tradição. O artista desenhou uma a uma todas as partes de sua pintura, de acordo com o método acadêmico, antes de relatá-las usando o método quadrado na tela. Os torsos nus das plainas são os dos heróis da Antiguidade, seria inimaginável para os trabalhadores parisienses da época”.

Caillebotte propõe uma composição muito rica dessa cena cotidiana. A luz diária inunda a cena e compõe um contraste entre a luz clara – entre o amarelo e o branco que vêm da janela –, e o chão de madeira, mais amarronzado nas extremidades, como sombra. Essas cores do ambiente são as mesmas dos personagens: a pele com nuances entre branco, bege e o marrom escuro das calças. Os corpos remetem à escultura italiana; os músculos ganham a ênfase na força do trabalho e os gestos dos instrumentos recebem o contraste da delicadeza. À primeira vista pode aparentar ter algo de sensual na atividade dos corpos masculinos nessa cena, quando na verdade ela evidencia a beleza no movimento do corpo no mundo, sem que esse seja necessariamente tomado como erótico.

Um vinho ao canto, as raspas estão no chão e parece que ouvimos o som do trabalho. O observador é disposto acima, em pé, diante dos trabalhadores, ajoelhados raspando o chão de madeira de um apartamento burguês. O interesse pelas interações entre classes, no meio urbano, tem uma parte importante no impressionismo. Meyer Schapiro comenta, sobre o quadro de Caillebotte, que “em nenhum desses quadros a atenção estava dirigida ao trabalhador como vítima ou herói; em nenhuma há uma figura idealizada, como em certas pinturas das décadas de 1840 e 1850”. Não há neles o idealizar do trabalhador do campo em Jean-François Millet, ainda associado ao bucólico. Contudo, mesmo que haja participação de trabalhadores no cenário das obras, as “suas misérias e conflitos latentes”, como diz Schapiro, não são identificados como temas.

A obra foi recusada no Salão de 1875 porque a entenderam como uma vulgaridade na exposição dos corpos e da classe, alguns críticos mencionaram que se tratava de “assuntos vulgares”. Ela foi apresentada, posteriormente, na segunda exposição do grupo impressionista, em 1876. É muito curioso que o júri tenha identificado como vulgar um corpo que trabalha e que tem forma, mas que não se incomoda e que legitima a profusão ininterrupta do erotismo do corpo feminino, a cada edição do Salão. É uma ideia bem seletiva de que tipo de corpo e classe poderiam estar nas paredes do Salão.

O crítico e romancista Émile Zola, porém, viu a obra com outros olhos, e falou de forma provocativa, “pintura que é tão precisa que a torna burguesa”. E, de fato, ele nos lembra que essa perspectiva do artista impressionista ainda era a de observar a vivência do outro com uma curiosidade associada ao viver de uma classe à qual não pertencia. Degas era aristocrata, Manet pertencia à alta burguesia, Caillebotte pintava a partir da cena de seu estúdio reformado. O que se faz ainda mais interessante é que essa obra evoca muito do próprio trabalho de Zola sobre as classes. Portanto, não concordando com Zola, há algo de muito humano em Lixadores de chão, de Caillebotte, que não pode ser ignorado.

O que ocorre é que, mesmo que houvesse uma fabricação no período sobre o que era pertencer à classe trabalhadora sem que essa dominasse a própria narrativa, a obra de Caillebotte exerce um poder inegável pela imagem. Demonstra uma força corporal no trabalho, que é repetitivo, e uma concentração na atividade que executa. Mesmo que Caillebotte desejasse fazer um trabalho sem idealizar o trabalhador, mas documentar sua ação, os três personagens são igualados a bailarinos nesse trabalho que criam: linhas perfeitas no chão, numa dignidade da atividade artesã, reduzindo os limites criados entre o artista burguês (legitimado pela instituição acadêmica) e o artesão.

Se havia o discurso da primazia do desenho entre os artistas, concedido àqueles que podiam pagar os estudos em um atelier e criar um renome quase divino, os lixadores de chão ganham uma ênfase de artistas ao ter sua criação diária tornada tema da pintura de Caillebotte. Pois, ao localizar o observador numa cena tão mundana que só poderia ser recusada e vista como vulgar, o trabalho repetitivo se iguala, aproximando artista acadêmico e artesão da grande atividade física que é trabalhar com as mãos, com os olhos, com os corpos.

Na semana passada, final de junho de 2020, o quadro retornou à sala impressionista do Musée D’Orsay, e a conservadora Claire Bernardi rearranjou o espaço para abrigar Lixadores de chão entre as outras obras do artista.

 

Referências bibliográficas

MARRINAN, Michael (2002). Caillebotte as Professional Painter: From Studio to the Public Eye. In Broude, Norma (ed.). Gustave Caillebotte and the Fashioning of Identity in Impressionist Paris. Rutgers University Press

Musée D’Orsay 

SCHAPIRO, Meyer. Impressionismo: reflexões e percepções. Tradução: Ana Luiza Dantas Borges. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
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