A história da literatura produzida no Brasil requer novos olhares. Faz tempo já, desde os idos da década de 1970, que Alfredo Bosi escreveu a sua História concisa da literatura brasileira. Desde então pouco se produziu, ou ao menos com força para uma nova abordagem do campo historiográfico literário brasileiro como o fez Luís Augusto Fischer, professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), crítico literário autor de inúmeros livros e ensaios, notadamente seu último, resultado da tese para titular na Universidade, chamado Duas formações, uma história: das Ideias fora do lugar ao Perspectivismo Ameríndio (Arquipélago, 2021.) Vou apresentar resumidamente aqui a sua ideia e na próxima coluna seguiremos nesta temática, com um desdobramento do seu pensamento já com os dois pés na disciplina História propriamente dita.
O título é sugestivo e requer explicação. Ao mencionar “duas formações”, está usando o conceito formação do crítico literário Antonio Candido, o mais importante no campo de estudos aqui no Brasil, autor do famoso A formação da literatura brasileira (1957). O termo significa um sistema, formado por três pontas que se retroalimentam, repetindo-se no decorrer dos anos formando uma tradição. São elas: o autor, que escreve poemas, romances, contos, etc.; a obra, pensemos nos livros de literatura; e o público leitor, que lerá esses objetos. Esses elementos juntos formam o sistema literário para Antonio Candido. Fischer pensa que o sistema literário que Candido apresenta diz respeito a uma formação socio-histórica situada no litoral brasileiro, muito ligada à economia escravagista e às cidades. Segundo autor, há outra formação no país, que diz respeito ao mundo do interior, chamado no livro de sertão, que se diferencia bastante do litoral, seja do ponto de vista econômico (havia escravidão, mas não era dominante), seja no modo de vida, mais rural que urbano, seja também pela visão de mundo/ideologia, digamos assim, sendo esta interiorana mais próxima ao mundo indígena, ao passo que a litorânea se assemelha mais ao modo metropolitano/europeu.
O esforço do livro de Fischer é apresentar que essas duas formações compõe uma mesma história, a História do Brasil, sendo portanto essenciais para um estudo sobre a História da Literatura brasileira. Esta depende daquela, partindo do pressuposto de que as obras de arte nascem de conjunturas históricas determinadas carregando significados intrínsecos de sua época de produção. Aqui já temos uma novidade: nunca se pensou assim em se tratando de história da literatura brasileira, dando maior peso à produção urbanófila, como diz provocadamente Fischer, muito por conta de São Paulo e do Modernismo, tema para outra coluna. Segundo o crítico, cada formação literária tem o seu exemplo máximo de realização literária: Machado de Assis para o litoral, e Guimarães Rosa para o sertão. Dois dos maiores escritores, sem sobra de dúvidas.
Machado de Assis é o escritor do Rio de Janeiro, sede da família real, capital do país; cidade cosmopolita, abrigo de um porto ativo para importação e exportação. A sua obra está repleta de personagens deste mundo, inclusive os negros escravizados urbanos, coisa rara na história da escravização ocidental – em geral o escravizado ia para o campo trabalhar em lavoura. Um de seus livros mais famosos é Memórias póstumas de Brás Cubas, um senhor de escravos urbano que destila sua vileza para com seus escravos e pessoas ao redor. Guimarães Rosa, por sua vez, em seu famoso e grande livro Grande sertão: veredas, traz à tona o mundo sertanejo, do pacto do fio do bigode, na confiança pessoal, na violência do sertão, e o faz com uma magistral escrita decalcada da fala daquele mundo, algo impressionante e revolucionário na história literária brasileira. Rosa leu, se inspirou e deu caráter de obra-prima à fórmula usada por Simões Lopes Neto, escritor gaúcho de temática gauchesca, cujo mundo é o do sertão, e cuja estrutura narrativa se assemelha à do livro de Rosa: um narrador em primeira pessoa que conversa com um interlocutor, que não fala, apenas escuta, e este narrador conta causos acontecidos pelo sertão, descrevendo o modus operandi desse mundo e consequentemente sua visão de mundo.
Para não me alongar, Fischer identificou que o país, continental do tamanho que é, deveria abranger diferentes experiências históricas e que isto estaria impregnado nas obras literárias. Por coerência, não podemos interpretar uma obra baseado em pensamentos que servem para outras, que advém de contextos históricos completamente distintos. Por isso a necessidade de identificar as diferentes formações sócio-históricas brasileiras e de pensá-las em conjunto, como parte de uma mesma História. (O subtítulo do livro será abordado no próximo texto.)
Rodrigo Mendes
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