A Libras é uma linguagem ou uma língua?

De acordo com dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, havia aproximadamente 1,5 milhão de pessoas surdas no Brasil. Destas, a maioria utiliza Libras como sua principal forma de interação com o mundo.  Desde o ano 2002, quando a Lei 10.436 reconheceu a Libras como meio legal de comunicação, a presença de pessoas surdas foi aumentando em espaços que antes eram ocupados somente por não são surdos (ouvintes). Hoje, podemos encontrar pessoas surdas, de maneira mais frequente, nas escolas, universidades, empresas e na Tv. Atualmente, muitos programas contam com a janela de Libras, na qual um intérprete traduz todo conteúdo da atração.

Toda essa visibilidade, aumenta a curiosidade sobre essas pessoas e como elas se comunicam. E nesse caminho algumas crenças populares veem à tona como o equivocado termo surdo-mudo, o correto é surdo. Outra dúvida frequente é se a Libras é uma linguagem, um código ou uma língua. Assim, esta é a questão que iremos esclarecer agora. Primeiramente, vamos compreender o que significa cada uma dessas definições e depois disto poderemos compreender em qual delas a Libras se encaixa.

O que é linguagem

Indo direto ao ponto, linguagem é a capacidade humana de usar símbolos, sons ou sinais para expressar pensamentos, emoções, ideias e informações de forma organizada e estruturada. A linguagem é inerentemente constituída por fatores sociais, culturais e históricos, ou seja sem o contato com os nossos semelhantes ela não existiria (VOLOCHÍNOV, 2018). Como exemplos dela temos os gestos, pintura, música, desenho e um infinidade de outras formas. A partir disso, podemos concluir que a linguagem é algo maior e mais amplo que abarca todas as formas de comunicação e capacidade humana para utilizá-la em contextos sociais específicos.

O que é um código

Com a compreensão do que é a linguagem já podemos perceber que o código é um dos elementos que a compõe. Ele é constituído de um sistema convencionado de símbolos, sinais, sons ou marcas que representam informações e são compreendidos por um grupo de pessoas que compartilham o mesmo conhecimento sobre esses ele (SMITH, 2010). O tipo de código que a maioria de nós já ouviu falar é o Morse. Além dele, há, também, as partituras e tablaturas musicais, a escrita braile, placas de trânsito etc.

O que é uma língua

Uma língua, também conhecida como idioma, é um sistema usado para comunicação entre indivíduos de uma comunidade linguística. As línguas são formadas por regras gramaticais que governam a combinação de palavras para expressar ideias e conceitos, além de um vocabulário amplo e inclusivo. Elas também são influenciadas por fatores culturais, históricos e sociais, o que leva a variações regionais e sua evolução constante. Todas as línguas compartilham características, sendo elas: produtividade, arbitrariedade, descontinuidade, versatilidade e padrão.

E a Libras, onde se encaixa nisto tudo?

O termo linguagem dos sinais por muito tempo foi utilizado (SASSAKI, 2002), e, até hoje, alguns jornalistas da Tv cometem um equívoco ao falar “linguagem de sinais”. Libras é a abreviação de Língua brasileira de sinais e há muito tempo os pesquisadores da área de linguística já reconheceram que ela tem todas as características, já citadas, das línguas naturais. Ou seja a Libras não é um produto artificial que foi criado para a comunicação dos surdos, e sim, ela surgiu espontaneamente. Para ficar bem claro, vamos explicar como cada uma das características se apresenta nesta língua.

Produtividade

Esse primeiro aspecto, a produtividade, permite que os usuários da Língua de Sinais criem palavras e frases para expressar ideias e conceitos novos (QUADROS; KANOPP, 2004). Assim, a Libras está em constante estado de transformação, pois novos termos nascem e entram em desuso todos os dias. Além, disso são incorporados novos sinais como o sinal para “EU AMO VOCÊ”, que antes era usado somente pela comunidade surda dos EUA e hoje foi adotado pelos surdos brasileiros.

Outro fator inerente a produtividade é a capacidade de expressar qualquer sentimento ou ideia, desde as mais simples até as mais complexas. Alguns podem achar que a Libras é limitada, mas a limitação não está na língua, mas sim no conhecimento do usuário sobre o assunto a ser sinalizado. Em meus mais de 20 anos de trabalho nesta área, por várias vezes, algumas pessoas já me disseram o seguinte: se a Libras é isso tudo que você diz, quero ver você explicar a teoria da relatividade geral com ela. E eu respondo: meu caro EU não sei explicar isso nem em português, minha área é Letras e não Física.

Para uma pessoa que conhece bem a teoria da relatividade geral, e que é fluente em Libras, não haverá dificuldades na explicação desse assunto. Por isso, sim, com a Libras é possível expressar qualquer ideia, desde que o usuário tenha conhecimento sobre o assunto, do mesmo modo que pode ser feito com uma língua oral.

Arbitrariedade

Outro fator que atesta que a Libras é uma língua é a arbitrariedade, isso significa que a forma de uma palavra na Língua de Sinais não está diretamente relacionada ao seu significado, assim como nas línguas orais. (QUADROS; KANOPP, 2004). Uma pequena parcela dos sinais podem ser considerados icônicos, ou seja a configuração da mão emula o objeto ou a ação a qual ele se refere. Como exemplo disto temo os sinais para TELEFONE e CASA.

Porém, esses sinais compõem apenas uma fração do vocabulário da Libras, pois a grande maioria não tem nenhuma relação visual com o seu significado. Observe abaixo o sinal para CONHECER, tente imaginar a ligação há entre a este sinal com o ato de conhecer algo.

Você deve estar nesse momento procurando uma relação, mas não há nenhuma. Aqui encontramos claramente um processo arbitrário que irá se repetir em milhares de sinais como AMAR, AJUDAR e PESSOAS. Como já dizia Saussure (2001), o signo/palavra é essencialmente arbitrário, assim você também não irá encontrar relações entre as palavras do português e os seus significados. Tente pensar por que o amor se chama amor, não há uma resposta.

Versatilidade e descontinuidade

Todos esses sinais arbitrários e icônicos apresentam uma característica de descontinuidade, assim eles são formados por partes mínimas, que também são chamados de fonemas, e caso você modifique apenas uma dessas parte, você terá um significado diferente. Os sinais para PEDRA e PAÍS demonstram esse aspecto, pois embora sejam parecidos eles têm um movimento diferente e isso causa uma completa distinção de seus significados.

Fonte:

O mesmo fenômeno ocorre nas línguas orais como o caso das palavras mola e bola, jarro e barro. Essa riqueza permite que a Libras tenha versatilidade e possa ser utilizada em contextos informais e formais que comtemplam desde situações cotidianas, poéticas e até audiências jurídicas (QUADROS; KANOPP, 2004).

Padrão

Por fim, o padrão significa que a Língua de Sinais segue regras sistemáticas e estruturadas, assim como todas as línguas (QUADROS; KANOPP, 2004). A Libras tem gramática, aqui não estou falando da infame gramática prescritiva que assombra a maioria das pessoas, mas sim de regras que regem o seu funcionamento e são compartilhadas de maneira natural por seus usuários. Na década de 80, Ferreira Brito trilhou o caminho para demonstrar que a Libras tem um conjunto de normas que são acionadas no momento da enunciação. Isso pode ser encontrado no livro que se tornou um clássico, para os que são da área, Por uma gramática da Língua de Sinais.

Em resumo, não resta dúvida que a Libras é uma língua, que é completa e sofisticada com as mesmas características que todas as outras línguas orais, e é usada como uma forma importante de comunicação e expressão para a comunidade surda. Poucas pessoas, hoje, conseguem compreender essa importância, mas isso não ocorre por uma limitação pessoal, mas sim por falta de acesso ao aprendizado da Libras que já deveria ser uma disciplina obrigatória na educação básica. Assim, convido você a conhecer essa bela língua e com isso ingressar no mundo dos surdos. Se fizer isso, você só tem a ganhar!

Referências

SACKS, O. W. Vendo vozes. Uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 23. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
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SASSAKI, R. K. Terminologia sobre deficiência na era da inclusão. In: Revista Nacional de Reabilitação, São Paulo, ano V, n. 24, jan./fev. 2002, p. 6-9. Disponível em <https://acessibilidade.ufg.br/up/211/o/TERMINOLOGIA_SOBRE_DEFICIENCIA_NA_ERA_DA.pdf?1473203540 > Acesso em: 12 de nov. 2017

SMITH, J. Codes and Technology Dictionary: A comprehensive guide to coding languages (2nd ed.). New York: Pearson Education, 2010.

QUADROS, R. M.; KARNOP, L. B. Língua de Sinais Brasileira: estudos linguísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
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VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. 1. ed. Trad. Grillo, S; Américo, E. V. São Paulo: Editora 34, 2018.
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Fonte da imagem:

Pexels – SHVETS production
https://www.pexels.com/pt-br/foto/anonimo-loiro-livro-estante-7516283/

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