Bruxas

Os homens da cidade se esconderam na capela. O santo padre, olhando tudo aquilo do altar, perguntava a si mesmo onde estariam as esposas daqueles que ali vieram, aos montes. As portas, pelo lado de dentro, iam sendo bloqueadas por duas vigas em cruz.

— Santo Padre, eles estão desmontando nossos bancos e os pregando em nossas portas! —  o coroinha advertiu.

— Fique calmo, filho. — respondeu o padre, com o terço espremido na mão. E, apontando para o lado direito, pediu:

— Organize uma fila em frente ao confessionário, por favor.

— É para já, padre. — “O apocalipse está próximo”, pensou.

Passadas duas horas de descontrole emocional, os homens concordaram em formar uma fi-la única para se confessar. Entre as conversas paralelas durante a espera, podia-se ouvir: “Bruxas”, “Enfeitiçado”, “São as mulheres” e um: “Ai, estou com medo”.

Alguns minutos depois:

— Jair… — ressoou a voz do padre, advinda de dentro do confessionário. Jair entrou, sentou-se e repousou as mãos sobre as pernas. — O que traz você… e todos estes outros homens aqui, filho?

— Meu bom padre… são… são as mulheres! — verbalizou, trêmulo.

— O que elas fizeram desta vez? — o padre questionou.

— O pior… meu… homem santo. O pior!

— Interromperam os afazeres domésticos, filho?

— Não… homem santo! Pior, pior! — gritou o homem — Me desculpe, acho que preciso de um calmante.

Ouvindo a solicitação do confidente, o padre pede ao coroinha que busque um copo com água e um comprimido. Após isso, silêncio. Jair olha o chão, sussurrando e gemendo; está orando. Ao ver isso, o coração do padre também se enche de desespero.

— A água benta está aqui, padre. Não temos comprimido em nossa salinha. — chega o coroinha.

Pegando o copo, vossa santidade autoriza o coroinha a se retirar e ergue a água benta em direção a Jair.

— Tome, meu filho; a melhor água sempre será a de Deus.

A água no copo pulula de um lado a outro na mão de Jair. Ele coloca sobre a mesinha ao la-do e continua:

— Foi… foi ontem que aconteceu. Era mais ou menos meia-noite, e eu estava andando tranquilamente pela calçada quando… quando eu vi uma moça.

— Sim… continue.

— A moça, andando em minha frente, percebeu meus passos e olhou para trás. Quando ela me viu, começou a agir estranho, segurou a bolsa no colo e apertou os passos. Então, eu comecei a andar mais rápido também. Por acaso, eu estava com uma faca na mão, mas era porque tinha achado na calçada e, pensando que era da moça, resolvi ir devolver. Ela começou a correr, até que olhou para trás e seus olhos estavam cheios de lágrimas. E foi aí que aconteceu. Ela parecia preocupada, parecia ter feito algo de errado.

O padre, escutando a confissão com os olhos semifechados e a mão sobre o queixo, fez sinal para que Jair continuasse.

— Foi esse olhar de espanto! Aconteceu algo durante esse olhar: ela sabia que ia me ferir, mas estava com medo de que alguém mais visse. Meus órgãos sexuais começaram a ser estimulados involuntariamente, então me bateu uma vontade enorme de tirar a roupa daquela moça. Eu corri… eu juro que eu não quis, homem santo. — interrompeu a fala, soluçando de tanto chorar — Rasguei as roupas da pobre moça, padre, eu rasguei… E a… a estuprei ali mesmo, na calçada. Acho que eu posso ter cometido um… cometido um…

— Um crime? — perguntou o padre.

— Não, de modo algum! Cometido algum ato involuntário por nada mais nada menos que… Feitiçaria!

— Feitiçaria, filho? Está me dizendo que você perseguiu uma fêmea pela rua próximo da meia-noite e… abusou dela sem querer?

— Era uma bruxa, padre! E é exatamente o que estou dizendo.

— Parece justo — respondeu o padre. — Conte-me mais, filho.

— Elas estão a solta, padre: as bruxas. Eu tenho certeza que fui enfeitiçado, nunca senti vontade de estuprar ninguém! Sempre fui um homem de bem. Pago minhas contas em dia, amo minha mulher e meus filhos… Mas, agora, nenhum deles fala mais comigo. Foi culpa da bruxa, padre! Tudo culpa da bruxa! — desatou a chorar, compulsivamente.

Os homens, na fila de espera para se confessar, comoveram-se com o choro do parceiro e começaram a gritar:

— Queimem as bruxas! Queimem as bruxas! Queimem as bruxas!

O padre, entendendo que Jair, naquele estado, extremamente abalado, não poderia mais continuar a confissão, dispensou o rapaz e foi ter com os outros homens do lado de fora.

— Isso é um desrespeito, padre! Não oferecem a nós, homens, nem auxílio médico. Fui na delegacia prestar queixa de uma bruxa que tentou me enfeitiçar! Quase caí em suas artimanhas e a estuprei, mas me controlei… após tirar a saia dela…. Depois disso, tentei registrar um boletim de ocorrência e o delegado passou a fazer perguntas ridículas, que insinuavam que eu havia cometido o crime, e não a bruxa! — gritou um homem. — Estamos sendo enganados! Estamos sendo enfeitiçados! Queimem as bruxas!

— Queimem as bruxas!

— Queimem as bruxas!

— Amigos, vamos fazer tochas para queimar as bruxas. — um dos rapazes deu a ideia.

— Vamos amigos, vamos — concordou o outro.

Em meio a todo este alvoroço, o coroinha estava assustado:

— Meu Deus! Santo padre, eu li isso na bíblia! Que as bruxas iriam se levantar e obrigar os homens a fazer coisas horríveis, como estupro e violência física e verbal.

— Traga a televisão para cá, filho. — pediu o padre.

Na TV, os noticiários informaram que os homens de todas as classes e estados civis estavam se levantando contra as bruxas. Maridos espancando as esposas, jovens chutando as garotas na rua. As autoridades públicas e médicos fecharam às portas para as bruxas, negando auxílio após os espancamentos.

De repente, ouviu-se um estrondo na porta, seguido de um tremor. Todos os homens pararam o que estavam fazendo e olharam para a entrada da capela. O padre desligou a televisão. O silêncio dominava o local santo.

— Alguém está aí? — perguntou a mulher, do lado de fora.

— É uma bruxa! — exclamaram assustados os machões.

— Marcos, eu sei que você está aí!

— É a mulher do Marcos. — Todos olharam para ele — Não caia na tentação, Marcos, ela não é mais sua esposa, e sim uma bruxa. — aconselhou outro homem.

— O apocalipse está acontecendo aqui fora, Marcos! Invadiram nossa casa e levaram o aparelho de som novinho… e a minha vassoura também, não sei por que! E onde você estava?! Escondido aí dentro todo esse tempo?! O que está acontecendo, Marcos?! Os noticiários dizem que a maioria dos homens da cidade estão aí com você. Marcos?!

Silêncio.

—  Me responde, seu canalha!

— Não a responda, Marcos. — pediu o coroinha.

— Tudo bem! Se é assim que você quer, é assim que será. — gritou a esposa. — Quando você sair daí, eu quero o divórcio!

Os homens se espantaram:

— Ela ameaçou o Marcos! É uma bruxa safada! — berrou o mais jovem entre eles.

Não se escutou mais nada depois disso. Os homens suspiraram e olharam ao padre, pedindo uma atitude imediata.

— Meus filhos, agora vejo a gravidade de tudo isso! É muito pior do que eu pensava. As mulheres estão incontroláveis, nos obrigando a coisas que jamais pensaríamos em fazer, como violência sexual, libertinagem, sodomia, depravação e… sodomia e… libertinagem e depravação. É isso. Filhos, só resta uma coisa a se fazer…

— O que, padre? — todos perguntaram.

— Vamos queimar as bruxas!

Os homens deram um berro de vitória, e foram preparar as tochas e as armas.

— E que Deus nos abençoe e nos guie nesta obra. — sussurrou o padre, fazendo o sinal da cruz.

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