Rubens, Marte e Réia Sílvia, óleo sobre tela, 46 X 66 cm, 1616-17. Conservada no Lichtensteinmuseum, Viena, Áustria.
« Desarmado, ainda sabes triunfar; estavas desarmado quando uma sacerdotisa [3,10] vos recebeu em seus braços, afim que Roma um dia adorasse em vós o pai de uma raça de heróis. » *
Ovídio, Fastos III, Marte e a vestal Réia Sílvia (3, 9-40)
Os temas mitológicos são recorrentes na pintura de Rubens, porém, incialmente o artista criava – digo criava, pois é possível que essa tela faça parte de um ciclo dedicado a Rômulo e Remo que não teve um comanditário, ou seja, ele estava mais livre para pensar suas composições – cenas que apresentavam uma visão pessimista, na qual o desejo amoroso levaria o personagem a um destino trágico, além da agonia e morte frequentemente associadas à fascinação pelas mulheres. Um exemplo dessa época é o seu Sansão e Dalila, de 1609-1610.
Rubens, Sansão e Dalila, óleo sobre painel, 185 X 205 cm, 1609-1610. Conservada na National Gallery, Londres, Inglaterra.
No período seguinte, os temas eróticos possuem finais mais otimistas, além das personagens femininas se tornarem cada vez mais curvilíneos. Nossa obra da semana, Marte e Réia Sílvia, pertence a essa época da carreira de Rubens.
O deus romano da guerra Marte, correspondente ao Ares grego, parece chegar sobre uma nuvem e toca delicadamente o braço da vestal Réia Sílvia. Uma vestal seria uma jovem sacerdotisa virgem, que deveria manter sempre aceso o fogo dedicado à Vesta em seu templo; uma posição de bastante prestígio na sociedade romana.
À direita temos o espaço da vestal, representado pela sugestão de uma arquitetura de templo, além de uma estátua, que talvez não represente Vesta, pelos seus atributos, e o tal fogo que não pode se apagar. Notem que é o braço do deus que invade o espaço de Réia, não o contrário; detalhe visual no mínimo interessante. A moça parece um pouco assustada com a aparição do deus – se um homem desconhecido e musculozão vem te abordar, e você é uma virgem, você ficaria extremamente animada ou extremamente assustada, não é? – e entre ambos, um menininho fofo e rechonchudo que segura flechas faz as vezes de Cupido, literalmente. Ele também pode ser identificado como um dos gêmeos Rômulo ou Remo, quando combinado ao outro menininho à extrema esquerda da composição, já que da união do deus e da bela moça – sedução ou estupro enquanto ela dorme, dependendo da versão – nascerão os gêmeos do mito da fundação de Roma. Inclusive, a mamãe dos garotinhos, não é qualquer loira vestal bonita; ela provém de uma linhagem ilustre, conforme convém ao mito de fundação de uma cidade que se vê grandiosa. Ela é descendente de ninguém menos que o troiano Eneu, herói da guerra de Tróia. Dependendo da versão do mito – Ovídio, Tito Lívio, Plutarco e muitos outros o contaram – ela poderia ser sua filha, daí o seu outro nome Ília, a troiana, ou sua descendente, dez gerações mais tarde, sendo assim filha de Númitor, rei de Alba.
Após o nascimento dos bebês, Réia Sílvia teria sido morta e seu corpo atirado no Tibre, rio que corta Roma, fazendo em seguida sua apoteose e se casando com o deus-rio Tiberinus; ou teria sido aprisionada e posteriormente libertada por seus filhos semidivinos.
Rubens conhecia profundamente a mitologia greco-romana; ele havia visitado a Itália e suas ruínas. É provável que a composição dessa obra tenha sido inspirada de um sarcófago romano do século III, repleto de personagens, com Marte e Réia Sílvia ao centro, visto pelo artista na Villa Mattei. Sarcófago hoje dividido – literalmente – entre a Villa Mattei e o Museu do Vaticano. O artista também fez muitos desenhos baseados em estátuas e fragmentos antigos, e, provavelmente, parte da pintura – uma coluna, uma estátua, um detalhe – deriva desses esboços.
Gesso do Museo della Civiltà Romana representando sarcófago romano do século III, hoje dividido entre a Villa Mattei e o Museu do Vaticano.
Como já dito anteriormente, Réia está na metade da composição ligada ao templo. Já Marte está na metade ao ar livre. Essa oposição faz referência ao papel da mulher e do homem na sociedade romana, entre muitas outras civilizações. A mulher se ocupa do ambiente doméstico, protegido de perigos, e pouco sai – a deusa Vesta, inclusive, é a protetora do lar e dos partos – enquanto o homem « está no mundo ». Além da oposição espaço interno X espaço externo, é possível perceber a pele muito branca e os cabelos loiros de Réia em contraste com a carnação e os cabelos mais escuros de Marte. Esse detalhe da pele é muito frequente nas obras de Rubens, tal como nos vasos gregos antigos, enfatizando ainda mais essa diferença dos sexos, dado que as atividades ao ar livre e ao sol acabam por deixar a pele bronzeada. A armadura, rígida e forte, em comparação às vestes delicadas e maleáveis da mulher é também outro detalhe que indica a intenção do artista de representar essa oposição.
Falando de roupas, é interessante notar que em diversas de suas obras, Marte aparece caracterizado de maneira quase igual, com uma armadura massiva e escura acompanhada de uma capa vermelha.
Rubens, O triunfo da vitória, óleo sobre painel de madeira, 1614. Conservado no Museumslandschaft Hessen Kassel, Kassel, Alemanha.
*Tradução livre do francês :
« Désarmé, tu sais triompher encore; tu étais désarmé quand une prêtresse [3, 10] te reçut dans ses bras, afin que Rome un jour adorât en toi le père d’une race de héros.
Bibliografia:
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Links:
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