Duas novelas para amar a literatura russa

Que a literatura russa é fonte de onde brota algumas das mais ricas obras da literatura universal não é nenhuma novidade, mas nem só de romances ela é feita. Para você que ainda não teve contato, ou que leu apenas as obras mais famosas de autores como Lev Tolstói ou Fiódor Dostoiévski, mas que deseja acessar esse mundo de sentimentos tão complexos e tantas vezes tão contraditórios, escolhi estas duas novelas que mostram que nem só de “Guerra e paz” e de “Crime e castigo” a literatura russa é feita.

    A dócil – Fiódor Dostoievski

A minha primeira sugestão é “A dócil”. A novela publicada por Dostoiévski em seu famoso “Diário de um escritor”, nos conta o drama de um homem de meia idade às voltas do caixão onde o corpo de sua jovem esposa aguarda pelo sepultamento. O autor buscou inspiração para a história nas notícias frequentes de suicídio que assombravam a São Petersburgo de sua época.

“… pois enquanto ela ainda está aqui – tudo bem: me aproximo e olho a cada instante; só que amanhã vão levar embora e – como é que vou ficar sozinho? Ela agora está na sala sobre a mesa, juntaram duas mesas de jogo, e o caixão vai ser amanhã, branco… (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.19)

Aos poucos, o leitor vai percebendo que a novela se trata do relato de um viúvo atormentado pela culpa pelo suicídio da esposa após uma série de eventos malogrados durante o período do matrimônio.

O narrador, um homem por volta dos quarenta anos, encontrara no casamento com uma órfã ainda na adolescência, a possibilidade de exercer o total controle sobre a esposa. É importante ressaltar que o marido fracassara no passado durante o período em que seguia a carreira militar, tendo sido humilhado pelos colegas de farda antes de decidir tornar-se dono de um estabelecimento, uma casa de penhores, onde, mais tarde, conhece a futura esposa.

Durante todo o período em que os dois estiveram casados, o marido buscava sempre colocar a esposa numa situação de inferioridade, baseada na precária condição financeira da jovem. Então, o marido admite que viveu um jogo cruel que culminou com o desequilíbrio mental da esposa e com sua morte prematura.

“O fato é que ela não tinha o direito de sair do apartamento. Sem mim não se vai a lugar nenhum, esse havia sido o acordo ainda quando ela era noiva. Ao anoitecer ela voltou; e eu, nenhuma palavra. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.48)

“Eu a levava pela mão, e ela não resistia. Ao contrário, estava terrivelmente perplexa, mas só até em casa. Ao chegar, sentou-se numa cadeira e cravou o olhar em mim. Estava extraordinariamente pálida; embora os lábios tivessem logo tomado forma de zombaria, o olhar já era de desafio solene e severo e, pelo visto, nos primeiros minutos estava seriamente convencida de que eu a mataria com o revólver. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.53)

O protagonista admite ainda que tentou abandonar a guerra que empreendera contra a própria mulher, mas que lamentavelmente havia se arrependido tarde demais.

“Então dei um salto e a abracei como um demente! Eu a beijava, beijava o seu rosto, os seus lábios, como marido, pela primeira vez depois de uma longa separação. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.81)

“O meu coração pulou pela boca, e gritei: Senhora, senhora! Ela ouviu, fez que ia se virar para mim, só que não se virou, deu um passo adiante, apertou o ícone contra o peito e se jogou da janela! ” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.82)

A novela termina com o marido ainda na presença do corpo da esposa, às duas da madrugada, se perguntado “O que vai ser de mim? ”, como quem não acredita no próprio passado, e, muito menos, no próprio futuro.

          O diabo – Lev Tolstói

O autor de romances como “Anna Karenina”, em “O diabo”, mais uma vez retoma a temática do adultério, tão presente e bem trabalhada em sua obra, como no romance já citado e em novelas como “Felicidade Conjugal” e “Sonata a Kreutzer”.

O jovem Evguêni, que vivia em São Petersburgo, com a morte do pai é forçado a mudar-se para uma das propriedades da família, a fim de salvá-la do endividamento. Porém, nesta mesma propriedade vive Stepanida, uma jovem camponesa casada com um homem que trabalha em Moscou.

Stepanida, cuja fama de ser infiel ao marido é conhecida em toda aldeia, é apresentada ao patrão por um de seus funcionários, quando Evguêni reclama a este que necessita de um encontro, como aqueles que matinha em sua cidade, e que segundo o próprio Evguêni, eram necessários para manter a saúde física e mental de um homem.

Escrito em 1898 e publicado no ano de 1916, seis anos após a morte do autor, “O diabo” é a história de como Evguêni Ivânovich Irtênev, um jovem herdeiro responsável pela recuperação dos bens da família, acaba arruinado pela própria consciência ao se perceber atormentado pelo desejo.

“Com um avental branco bordado caindo sobre a saia rústica castanho-avermelhada, um lenço vermelho vivo na cabeça, descalça, jovem, forte, bonita, ela estava ali, de pé, e sorria timidamente.
(…)
Ele se aproximou e, olhando em volta, tocou-a.
(…)
Após quinze minutos eles se separaram.
(…)
Ele estava satisfeito. Ficara encabulado somente no princípio, depois passou. E tudo tinha saído bem. O mais importante era que agora se sentia leve, calmo e bem-disposto. Quanto à moça, nem tinha reparado direito nela. (TOLSTÓI, 2008, p.131-132)

São sempre assim os encontros entre Evguêni e Stepanida. O jovem não mantém qualquer expectativa ou interesse pela camponesa, muito menos, qualquer preocupação relacionada ao fato de que a amante se trata de uma mulher casada. Porém, após o casamento de Evguêni com Liza, noiva que ele próprio escolhe por amor, sua consciência passa a perturbá-lo, em princípio pelo temor de que o antigo caso (a essa altura eles já não se encontravam mais) seja descoberto, e num segundo momento, pela obsessão que ele passa a nutrir pela camponesa

“Ele não podia ficar em casa e passava o tempo no campo, no bosque, no jardim, no celeiro, e por toda a parte a imagem viva de Stepanida o perseguia de tal maneira que ele raramente se esquecia dela. Mas isso ainda não era o pior. ” (TOLSTÓI, 2008, p.165)

Evguêni, então passa a acreditar que a antiga amante o perseguia, criando situações para que eles se encontrassem.

“Era evidente que ela percebera seu desejo de reativar a antiga relação e fazia tudo para estar no seu caminho. Nenhuma palavra fora dita por ele, nem por ela, por isso nenhum dos dois marcava abertamente um encontro, apenas procuravam a oportunidade de se encontrar. (TOLSTÓI, 2008, p.165)

Sem ter coragem para admitir para si mesmo a intenção de trair a esposa, Evguêni se desequilibra a tal ponto que passa a acreditar que Stepanida tem poderes sobrenaturais e que, por isso, exerce sobre ele tanta atração.

“Ela é o diabo. É o próprio diabo. Pois ela se apossou de mim contra minha própria vontade. ” (TOLSTÓI, 2008, p.177)

O pensamento seguinte de Evguêni é seria a resolução do impasse diante do qual se encontrava:

“Matá-la? Sim. Só há duas saídas: ou matar minha esposa, ou matá-la. Porque é impossível viver dessa maneira. É impossível. É preciso pensar bem e prever: se permaneço assim, como estou agora, o que pode acontecer. ” (TOLSTÓI, 2008, p.177)

A partir desse momento, temos o desfecho trágico e imprevisível dessa história repleta de desejo e obsessão, em que o sexo apesar de implícito, move toda a ação. Essa trama fascinante conta também com um final alternativo, que em minha opinião, consegue ser ainda melhor do que o original.

Referências Bibliográficas:

DOSTOIÉVSKI, F. A dócil. Editora 34: São Paulo, 2009.
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TOLSTÓI, L. O diabo. L&PM: Porto Alegre, 2008.
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Referência de imagem:

http://alternative-prison.blogspot.com.br/2013/03/dostoievski-e-tolstoi.html

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