OBRAS INQUIETAS 35. “Uma família de san-culottes descansa depois das fadigas do dia” (1792), James Gillray

É muito sutil a linha que separa o ser humano do animal, a civilização da bestialidade, a ordem do caos. Todos possuem um ser primitivo à espreita no seu interior, alguém que já existia antes mesmo que caminhássemos eretos, criatura feita de terror e de raiva pura; uma fera ansiosa por liberdade, que observa os outros com gula e cobiça, músculos retesados prontos a se soltarem em um salto na jugular alheia. Não tentem mentir – eu conheço a besta que mora na sua sombra, pois ela é a selvagem irmã daquela que meus olhos escondem. É só uma mera convenção social que nos impede de matar o outro, de devorar crianças (a carne delas, será doce ou salgada? Eis uma dúvida que acalentará os seus pensamentos noturnos hoje, pouco antes do horror te fazer sucumbir ao pesadelo que não lembramos), de violentar mulheres, homens, cavalos, cachorros. Afinal, quem não pensa como eu é o inimigo, e meus inimigos não possuem alma. É assim que justificamos a besta que se alimenta das nossas virtudes, vomitando escuridões e medos. No entanto, chegará o dia em que abriremos os olhos e veremos que a civilização é somente um verniz e, debaixo dele, se esconde um oceano furioso; nesse dia, as bestas cavalgarão pelo mundo, e todo o horror que já imaginamos não fará jus à imaginação sem freios do animal que nos habita, e cujos olhos famintos podemos ver às vezes brilhando no interior da nossa sombra. Quando a civilização enfim for desmascarada, não mais existirá arte, não mais existirá nada a nos dividir; seremos os animais que sempre desejamos, e nos entregaremos alegremente à tarefa de destruirmos um ao outro. Quando esse dia chegar (e está cada vez mais próximo), corra rápido, pois a maldade humana não terá mais nada a lhe segurar.

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