‘Ética’ é uma palavra traiçoeira. Isto acontece devido ao uso dado aos adjetivos ‘ético’ e ‘antiético’, que denotam um valor moral às nossas atitudes. Para a filosofia, no entanto, a ética (aqui, um substantivo) é a investigação de tudo aquilo que afeta o comportamento humano. Em outras palavras, a ética está sempre perguntando: por que a gente faz o que faz?
Pode parecer estranho utilizar a ficção para entender como pessoas reais se comportam, mas ela se mostra uma ótima fonte de estudos para o assunto. Aristóteles, na “Poética”, já apontava para este fato:
“… não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade. (…) (O historiador e o poeta) Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular.” (Aristóteles, p.43)
Estendendo à ficção o que é dito da poesia, de acordo com as palavras do filósofo, é a verossimilhança que nos permite analisar uma obra de ficção como um baú onde encontramos a humanidade em seu estado mais universal, uma multidão de indivíduos imaginários agindo conforme um conjunto abstrato de regras ao qual damos este nome estranho: verossimilhança.
Verossímil, em sua etimologia, é aquilo que se assemelha à verdade. Não existe uma régua exata para medir a verossimilhança das histórias que consumimos. Uma maneira simples, no entanto, de verificar se uma história é verossímil ou não é notar se ela é capaz de nos fazer esquecermos de que se trata de uma ficção. Se ela for bem sucedida em nos “enganar”, então seus criadores fizeram um bom trabalho no que diz respeito à verossimilhança.
Nesses casos, coisas curiosas podem acontecer como, por exemplo, algo que presenciei numa aula há poucas semanas. Estávamos discutindo em sala a respeito do livro “Relatos de um Certo Oriente”, de Milton Hatoum, e uma dúvida surgiu acerca das ações de uma determinada personagem. Iniciou-se, então, uma reflexão envolvendo sua personalidade. A construção dessa personalidade só é possível preenchendo-se lacunas de informação sobre oapersonagem, uma vez que o texto só nos dá uma porção limitada dela. Por se tratar de uma personagem que imita bem a realidade, tudo que ali foi discutido a respeito do que motivou suas ações não é mera interpretação de texto, é uma discussão ética cujos apontamentos encaixam-se perfeitamente no mundo real.
Num caso ainda mais interessante, no livro “Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen”, Freud toma por objeto de pesquisa o conto do escritor Wilhelm Jensen chamado “Gradiva” e analisa as fixações e os sonhos de seu protagonista de acordo com sua teoria psicanalítica. Como se se tratasse de um de seus pacientes, Freud foi capaz de organizar uma hierarquia de referências simbólicas nos sonhos da personagem que explica com precisão e clareza todos seus sentimentos e atitudes, fazendo da narrativa um verdadeiro ensaio sobre a psique humana.
Episódios como este encontram aporte teórico num pequeno excerto de Umberto Eco, publicado em suas “Confissões de um Jovem Romancista”, onde disserta sobre o poder ético das personagens de ficção. O autor e pesquisador italiano diz o seguinte na conclusão do texto:
“A ficção sugere que nossa perspectiva do mundo verdadeiro talvez seja tão imperfeita quanto a visão que as personagens de ficção têm de seu mundo. É por isso que as personagens de ficção bem-sucedidos se tornam exemplos supremos da condição humana “real”.” (Eco, p. 108)
Não é muito diferente do que diz o trecho da “Poética” de Aristóteles citado mais acima. Se entendermos uma personagem de ficção bem-sucedida como uma personagem verossímil, tornar-se um exemplo supremo da condição humana “real” nada mais é do que o aspecto universal de que fala Aristóteles.
O interessante, e trágico, aqui é a primeira parte desta passagem. Eco chama atenção anteriormente em seu ensaio a como vemos Édipo, Hamlet e tantas outras personagens clássicas arrastarem-se para a tragédia certa, fazendo cada escolha parecer milimetricamente calculada para o desastre. Isto se dá pela visão imperfeita, ou defeituosa, que os personagens têm de seu mundo ficcional. Assim como eles, somos míopes quanto ao nosso mundo e agimos na incerteza do destino para onde nossas decisões nos levam. Isto é o que sugere Eco a partir de mais um paralelo entre os personagens humanos reais e as personagens de ficção.
Referências:
- Aristóteles. Arte Poética. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda., 2003
- Eco, Umberto. Confissões de um Jovem Romancista. São Paulo: Cosac Naify, 2013
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