A tatuagem é, sem dúvida, uma das manifestações artísticas mais antigas do mundo. Ela nada mais é do que uma forma de arte que é marcada permanentemente sob a pele humana. A tatuagem já foi associada ao espiritual como na religião hindu, mas também já foi motivo de proibição pelos cristãos. Hoje, a tatuagem possui um valor comercial e artístico, mas ainda encontra resistências, principalmente em certos segmentos religiosos e sociais. Essa arte, além de ser vítima de preconceito, também produziu alguns preconceitos ao criar um ambiente de profissionais homens e machistas. Laís Celant é tatuadora e feminista e um dos símbolos de uma nova geração de artistas talentosas. Em entrevista ao Artrianon, ela contou um pouco de sua carreira, influências, preconceito em sua área e nos mandou, claro, um pouco do seu incrível trabalho.
Você é formada em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, certo? Conte-nos como foi esta experiência e quando você decidiu se tornar uma tatuadora?
Laís Celant: Desde a infância eu era apaixonada em desenhos e artes em um contexto geral. Fiz cursos de pintura e alguns tipos de artesanato. Na adolescência, eu desenhava roupas e queria ser estilista. Quando me formei no ensino médio, prestei vestibular para filosofia porque, além de me identificar muito, a universidade ficava próxima a minha cidade. Na época, o curso de artes visuais que eu queria ficava em Curitiba e meus pais não poderiam me manter em outra cidade. Mesmo amando a filosofia, não me sentia plena. No terceiro ano da graduação, eu comecei a dar aulas contratada pelo estado e também em colégio particular. Já tinha algumas tatuagens na época, desde criança eu adorava esta arte. O problema é que o acesso a materiais e principalmente ao conhecimento eram limitados até alguns anos atrás e por isso eu achava praticamente impossível ter a oportunidade de aprender a tatuar morando no interior. Mas, mesmo assim, meus amigos sempre me motivaram a buscar este aprendizado e foi quando comprei um kit básico pela internet no final de 2012. Com o material em mãos eu não sabia o que fazer (risos), então eles ficaram guardados por um tempo. No meu último ano da graduação (2013), eu saí da cidade em que morava (Palotina) e fui para Toledo, que é próxima e maior. Lá fiz contato com alguns tatuadores e um deles se propôs a me ensinar. Paguei uma grana para o cara e fui aprendiz dele durante vários meses. Ali eu apenas observava e atendia clientes, limpava e comprava materiais. Levou um tempo grande para eu começar a tatuar em pele humana. E quando comecei a fazer meus primeiros pequenos desenhos, eu me formei em filosofia. Em um mês eu estava de mudança para Goiânia. Eu não tinha como prever, mas minha carreira profissional estava prestes a começar.
Quais foram as etapas que você passou para se especializar em sua área?
Laís Celant: Após este período em que fui aprendiz no Paraná, me mudei para Goiânia. Não conhecia outros tatuadores e tinha poucos amigos no começo. Amigos estes que começaram a me ceder a pele e treinava nos finais de semana que eu não tinha serviço das escolas que trabalhei. Fiquei todo o ano de 2014 neste ritmo e estudava com os poucos meios que havia como a internet ou observando trabalhos de outros artistas. No final do primeiro ano de estadia em Goiânia, ainda em 2014, conheci os donos de um estúdio chamado tattoo KAM, que me adotaram, e lá trabalhei por um ano fazendo trabalhos comerciais pequenos. Foi um período de estudo e muito aprendizado. O Xavier, que era dono do KAM, é europeu e havia trabalhado em alguns lugares da Europa e EUA. Ele foi meu mestre. Larguei a docência e decidi me dedicar inteiramente à arte da tatuagem. No ano seguinte, saí do estúdio e passei a trabalhar por conta em Goiânia e quando de vem em quando vinha para o Paraná fazer temporadas. A partir deste ano comecei a participar de workshops e grupos de estudo. Fiz amizade com muitos tatuadores de Goiânia e de outros lugares do país nas convenções que participei e que muito agregou para o meu conhecimento das artes. Além dos cursos, fiz estudos em diferentes tipos de papéis, lápis de cor, aquarela, giz pastel, pinturas em quadros, etc. O curso de Biossegurança também foi muito importante para me profissionalizar e tatuar com segurança, tanto com relação à minha saúde, quanto a saúde dos clientes.
Seu principal trabalho é como tatuadora, mas você também trabalha com outras formas de pintura como telas e algumas produções em artesanato. Pode nos falar um pouco sobre estes outros trabalhos realizados?
Laís Celant: Isso. Desde criança já fazia meus porta incensos e pulseiras de miçanga (risos). Eu cresci sempre envolvida em trabalhos manuais e que ajudaram muito na minha renda. Já fiz muitos tipos de trabalho artesanal, pinturas com verniz vitral, bordados, mandalas, bijuterias, filtro dos sonhos e restauração. Atualmente trabalho mais com desenhos, pinturas em aquarela e assim que organizar meu tempo pretendo voltar às telas. Quando quero relaxar, pego minhas linhas e tranço filtros. Também amo restaurar móveis e peças em gesso.
Como você define seu traço e estilo artístico?
Laís Celant: Ainda estou desenvolvendo meu estilo artístico. Tatuo profissionalmente há dois anos e meio e tenho meu estúdio próprio há seis meses no Paraná. Os clientes geralmente vêm com uma ideia na cabeça ou referência pronta e, sempre que possível, faço alterações ou, melhor ainda, crio meus próprios desenhos. As pessoas me procuram muito para tatuagens delicadas, fine lines (linhas finas) e aquarelas. O meu interesse é me especializar em neotraditional e black work, que são estilos que variam entre o preto e cinza ou bem colorido. Gosto de desenhos macabros com uma pegada mística em que posso aplicar nestes dois estilos.
Quais são suas inspirações artísticas?
Laís Celant: Inspiro-me em muitos artistas. Adoro pesquisar e observar a unicidade e autenticidade em cada um. Em um contexto de estilo, minhas inspirações variam entre neotraditional, Black work, ornamental e realismo (existem outras, mas estas são as mais marcantes). Entre artistas, sou apaixonada pelo trabalho de Emily Rose Murray, Hannah Flowers, Olie Siiz, Antony Flemming, galera do Black Veil tattoo e dos brasileiros Rejane Olig, Murilo tattoo, Joana PPtinta, Paula Aquino, entre outros. Coincidência ou não, as mulheres são a maioria da minha lista.
Como é este mercado para mulheres tatuadoras no Brasil?
Laís Celant: Atualmente o mercado está bem aberto e receptivo. Depende do estudo e dedicação de cada um. Influências também contam muito. Conhecer tatuadores neste meio que te ajudem, conta muito! O que antigamente era um espaço tão masculino, hoje é bem diversificado e as mulheres provam que são tão boas ou melhores que muitos homens. E isso é ótimo porque existem muitas mulheres que se sentem mais confortáveis com outras mulheres, sobretudo para tatuagens íntimas. Mas tem homens, principalmente os das antigas que usam de sarcasmo e cinismo quando falam de uma tatuadora, mas calam a boca rapidinho quando veem um “trampasso” que uma artista criou. Enfim, só temos a ganhar desde que trabalhemos com seriedade e dedicação. Ninguém nos inibe, somos muito GRL PWR mesmo! Hahaha
Em sua opinião, o mercado em que você atua é machista?
Laís Celant: O machismo é uma doença encontrada em todo lado, em toda parte e na grande maioria dos indivíduos. A nossa sociedade é machista em um sentido geral, então toda a área de trabalho que foi representada por homens durante muito tempo sempre encontra uma resistência. Existem muitas mulheres também machistas. O segredo é botar a cara no sol, arregaçar as mangas e mostrar do que somos capazes. Devemos realizar aquilo que nos propormos fazer com amor, se é isso que queremos. Ponto final.
Você tem contato com outras tatuadoras pelo país? Se sim, como é essa troca de experiências?
Laís Celant: Sim, várias! A Fernanda Lacerda é uma amiga em que conheci em um dos cursos que fiz. A Rejane Olig é uma artista que considero muito e tenho uma arte dela eternizada em mim. Tem a Joana daqui do Paraná, que é uma querida e que eu acompanho muito. E tem várias outras. Com a correria do dia a dia é muito raro tirar um tempo para conversar ou visitar. A que eu tenho mais contato é a Nanda. Eu participo de um grupo de mulheres tatuadas onde trocamos ideia sobre arte, feminismo e tudo de bom que rende nos assuntos de meninas.
O que se tem discutido (entre vocês mulheres artistas) no combate aos preconceitos na área?
Laís Celant: É como falei antes, é estudar e mostrar para que veio. Não adianta entrar em tretas e atritos verbais. Acho que dedicação e cabeça erguida cala a boca de muito machista.
Você pode nos falar um pouco sobre suas metas alcançadas e quais são suas projeções para o futuro?
Laís Celant: Minha meta é estudar e estudar. Evoluir e evoluir. Dedicar-me a outras expressões artísticas que me ajudam na tatuagem e nunca parar. Agora eu tenho o meu estúdio e devagar estou deixando ele bem à minha cara e com a ajuda do meu companheiro Fernando, que é incrível. Sem ele eu não daria conta. O começo foi muito difícil, muito mesmo. Sem ter um espaço legal, sem conhecer praticamente ninguém. Em poucos anos estar como estou é uma benção da natureza. Eu tenho muita gratidão e minhas projeções são crescer e tatuar fora também. Não sei onde quero chegar. Estou focada no agora e cheia de inspiração e confiança.
Finalmente, que recado ou dica você poderia deixar para quem está começando nessa área?
Laís Celant: Tenha PACIÊNCIA. Seja gradual e não se afobe em querer fazer desenhos grandes e complexos de cara. A técnica da tatuagem não é só seguir um estêncil colado e furar a pele para soltar tinta. O curso de Biossegurança é de extrema necessidade. Não pode tatuar sem ter noção de nada. Estude, leia, assista vídeos, faça Works… tudo isso agrega. Mas ainda acho que ter paciência é fundamental. Nenhum tatuador fica rico da noite para o dia. Boa sorte !!
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