Se no romance de 30 há espaço para obras como São Bernardo e Menino de Engenho, cuja temática rural está impregnada na narrativa e nos personagens, há espaço também para O amanuense Belmiro. Contudo, com este acontece um pouco diferente. Lançado em 1937 a partir de crônicas suas quando era redator de A Tribuna, Cyro Versiani dos Anjos construiu uma obra singular no movimento da década por fazer prevalecer o lirismo à realidade e por abrir mão do campo para falar na ainda incipiente, porém urbana e moderna (ou em modernização, como aponta Roberto Schwarz), Belo Horizonte.
Sob a ótica do amanuense Belmiro em seu diário, acompanhamos partes de seus dias, em sua maioria devaneio, outras apatia e ainda questionamentos sobre a vida e suas (não) relações pessoais. O intimismo (que combina acertadamente com a forma que o autor utilizou – um diário) e seu lirismo fazem de Belmiro um personagem único a perambular pelas ruas de Belo Horizonte. É um burocrata com amigos de diversas camadas e ideologias que, através da ironia consegue suportar o dia a dia.
Além disso, o protagonista e suas relações servem de gatilho para uma ideia maior de sociedade, demonstrando elementos constitutivos desta. Por exemplo, o emprego que, muito bem colocado no título do romance, lhe suspende o arbítrio em troca do ritmo da burocracia provinciana (PÉCORA, 2009), o foi concedido através de uma relação de seu pai com um deputado. Outro elemento importante são seus amigos, que ilustram a polarização política da época no país.
Cyro dos Anjos construiu uma narrativa lírica, irônica, contraditória e melancólica. O amanuense é o retrato da apatia. Em certo momento, o personagem diz: “sou apenas um poeta lírico, em prosa, e só desejo que me deixem sossegado”. Ele não busca esse sossego, suas atividades estão suspensas enquanto ele imerge em seu lirismo. E essa suspensão parece se apoiar na sua memória, que não poucas vezes no romance retorna à Vila Caraíba, lugar onde nasceu. Reclama (para si mesmo) da “extinção do brilho rural”, mostrando a tensão típica do romance de 30 entre o campo e a cidade. É como se sua vinda à cidade justificasse sua apatia.
Belmiro parece enxergar o mundo através de uma lente memorialística e sonhadora. Há uma longa passagem em que imagina Carmélia Miranda, sua paixão platônica, e dessa imaginação, leva seu devaneio ao absurdo de ir ao Rio de Janeiro a pretexto do serviço a fim de vê-la embarcar para a Europa com seu marido. Essa subjetividade exacerbada e confusa é problemática. No caso citado, fantasia-se com uma mulher que nem o conhece. Em outros casos, irá silenciar violências e conflitos sociais. Para ele, o lirismo está acima da realidade, bem como o humanismo acima da economia, política etc. Ingênuo, Belmiro poderia servir de base para pensamentos de extrema direita que ascendiam na época, como é partidário seu amigo Silviano.
Como bem disse Alcir Pécora, O amanuense Belmiro é um romance reticente. Falta a Belmiro vontade de agir, de mudar. Enquanto isso, a sociedade brasileira e o capitalismo avançam, em nome da modernização, e vão enterrando no arcaísmo lugares como Vila Caraíba (há uma contradição interessante entre esses acontecimentos e a apatia de Belmiro). Schwarz dirá que o irremediável para o protagonista está na continuidade. Ele anda em círculos e seguirá assim. Cyro dos Anjos captou com excelência esses movimentos em seu grande romance, mostrando outra face do que vinha sendo produzido na década de 30, e sem deixar de lado elementos fundamentais do período. Assim, entre semelhanças e diferenças, O amanuense Belmiro tornou-se um romance único e de grande qualidade da literatura brasileira.
Referências:
ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. São Paulo: Globo, 2009.
PÉCORA, Alcir. “Um romance reticente” in: O amanuense Belmiro. São Paulo: Globo, 2009.
SCHWARZ, Roberto. “Sobre o Amanuense Belmiro” in: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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