Nessa obra-prima do conto russo, Tchékhov revela a crueldade dos jogos implícitos nas relações cotidianas de amor e amizade.
Ao longo do conto, o narrador revela a curiosa “brincadeira” a que submetia a jovem Nádia, (que em diversos momentos era chamada de pelos diminutivos Nádenka ou Nadêjda). Nádia era levada ao limite do medo e da emoção, quando o narrador lhe pedia que descesse com um trenó a colina coberta de gelo. A moça era levada ao topo de um morro, sentindo o rigor do inverno russo, para cumprir a ordem do “amigo”, que exigia que a jovem o acompanhasse durante a descida.
“— Deslizemos até lá em baixo, Nadêjda Petrovna! – imploro eu. — Só uma vez! Garanto-lhe, ficaremos sãos e salvos!
Mas Nádenka tem medo. Toda essa extensão, desde as suas pequeninas galochas até o fim da montanha de gelo, se afigura a ela como um terrível abismo de profundidade imensurável. Ela fica tonta e perde o fôlego, só de olhar lá para baixo, quando eu apenas lhe proponho sentar-se no trenó – que terá então se ela arriscar despenhar-se no precipício? Ela morrerá, enlouquecerá!
— Eu lhe suplico! – digo eu. — Não tenha medo! Compreenda, isso é fraqueza, é covardia!”
Em sua primeira descida, a jovem que ficava em pânico apenas com a proximidade do abismo, ouviu do narrador à meia voz um “eu te amo” que se confundia com o som do vento. Nádia duvidou de si mesma e, apesar de todo o pavor do percurso, pediu que o amigo repetisse com ela o trajeto, o que aconteceu por mais algumas vezes. A “brincadeira” se repetiu nas descidas seguintes e, ao fim do dia, Nádia permaneceu sem nenhuma certeza.
No outro dia, a jovem enviou um bilhete ao companheiro de aventuras, pedindo a ele que fosse novamente à montanha e que a levasse. O narrador relata que não só não a acompanhou, como também foi ao local para assistir a moça realizar sozinha a descida, na esperança de ouvir novamente a voz do vento.
“Um dia, fui até o morro sozinho; misturei-me à multidão e vi como Nádenka chegou até o sopé, como me procurou com os olhos… E depois, timidamente, ela sobe os degraus… Ela tem medo de ir sozinha, oh, quanto medo! Está pálida como a neve, treme e vai, como se fosse para o cadafalso, mas vai, vai sem olhar para trás, com decisão. Pelo visto, ela resolveu, finalmente, tirar a prova: será que se farão ouvir aquelas palavras estranhas, quando eu não estiver junto? E vejo como ela, lívida, com a boca entreaberta de horror, toma assento no trenó, fecha os olhos, e, despedindo-se para sempre do mundo, o põe em movimento… “zzzzzz…” zunem as lâminas. Ouvira Nádenka aquelas palavras? Não sei… Vejo apenas como ela se levanta do trenó, exausta, fraca. E vê-se pelo seu rosto que nem ela mesma sabe se ouviu alguma coisa ou não. O pavor, enquanto ela voava morro abaixo, roubou-lhe a capacidade de ouvir, de distinguir os sons, de entender…”
O narrador relembra que um pouco antes de sua partida da cidade, foi à casa de Nádia e a observou no pátio, triste, como se estivesse olhando para o nada. Mais uma vez o narrador “brinca” com a moça.
Nádia sorri encantada e estende seus braços como se tentasse abraçar o vento.
“Mas eis que chega o mês de março, primaveril… O sol torna-se mais carinhoso. O nosso morro de gelo escurece, perde o seu brilho e se derrete, afinal. Acabaram os passeios de trenó. A pobre Nádenka já não tem mais onde ouvir aquelas palavras, e nem há quem as pronuncie, pois o vento não se ouve mais, e eu me preparo para voltar a Petersburgo – por muito tempo, quiçá para sempre. ”
“Brincadeira” é uma leitura obrigatória não só pela maestria do contista, mas também pela sutileza com que ele aborda as relações de poder que podem existir até mesmo nos momentos mais cotidianos, entre as paisagens mais belas.
Referência:
TCHÉKHOV, A. Contos de Tchékhov. Trad. Felipe Guerra. Relógio D´água, 2006.
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