Depois de semanas discutindo obras de arte contemporâneas, voltamos a nossa querida arte medieval com um conjunto de pinturas murais em uma pequena igreja em uma pequenina cidade, Nohant-Vic, no centro da França, no território do chamado Berry histórico.
Os afrescos, que se localizam no diafragma – espaço que separa a nave do coro -, no coro e na abside contam, principalmente, a história da infância e da Paixão do Cristo, além da vida de São Martinho, a quem a igreja é dedicada, e alguns outros temas. Em volta das janelas e sublinhando outros detalhes arquiteturas, existe uma decoração anicônica, ou seja, sem imagens, constituída de fitas e elementos decorativos ocres e vermelhos. É importante notar que as pinturas representam uma segunda campanha de decoração da igreja, que, portanto, é um pouco mais antiga que estas. Não se sabe nada sobre as imagens anteriores que poderiam ter decorado o local.
Adoração dos magos
A entrada do Cristo em Jerusalém
A Última Ceia
Prisão do Cristo
Cena da vida de São Martinho
O bom estado de conservação das pinturas, que entretanto, foi restaurada várias vezes, se deve à técnica dita « a fresco », na qual o pintor trabalha sobre o indute ainda fresco. O artista dividia os espaços a serem trabalhados, aplicando o indute fresco no local determinado, sobre o qual deveria trabalhar rapidamente, antes que o material secasse.
Não se sabe quem foi o artista que realizou a série de pinturas, entretanto, trata-se da mão de um único artista, que interpretou as cenas de um programa iconográfico pré-definido pelas autoridades eclesiásticas, provavelmente da abadia de Déols, à qual essa igreja era subordinada, com um estilo bastante pessoal em cenas com composições bastante dinâmicas, traços e figuras estilizados, além de corpos alongados. Quanto ao colorido, o tratamento da superfície segue a tradição carolíngia com tons claros e ocres, opostos às imagens sombrias italo-bizantinas.
Através do estudo das imagens, os especialistas notaram que o pintor trabalhava da direita para à esquerda, em direção oposta ao sentido da história contada, sugerindo assim a existência de um plano complexo previamente estabelecido, que valorizava o significado alegórico em detrimento de representar uma simples narrativas em diversas cenas. As pinturas, a partir do diafragma, em oposição ao resto da igreja pintada de branco, mostra a divisão do espaço eclesiástico, o mais sagrado sendo decorado e o destinado aos fiéis apresentado em branco.
Trata-se de uma progressão que leva do espaço menos ao mais sagrado, algo que acontece com frequência na decoração de igrejas românicas. Segundo M. Kupfer, esse contraste possui um significado particular: ele simboliza a passagem do homem do mundo terrestre ao divino, a passagem da vida terrestre e pecadora ao Paraíso; passagem esta que só é possível através do Cristo, mostrado em majestade dentro de uma mandorla, imagem que alude ao Juízo Final, no diafragma, espaço de passagem entre um local e o outro. Notem que o Cristo está exatamente acima da porta, o que poderia remeter a frase « ego sum ostrium » que quer dizer « eu sou a porta », aludindo ao seu papel como porta do Paraíso e da salvação.
Alinhado a imagem do Cristo e parecendo indicar o altar, temos a figura do Agnus Dei, cordeiro de Deus, em latim, símbolo do sacrifício do Cristo. Lembremos que o altar, espaço mais sagrado do edifício, onde acontece o mistério da eucaristia. Em conjunto com esses símbolos, há ainda no diafragma, abaixo do Cristo, a imagem da Anunciação, que atesta sua Encarnação, que se renova durante a eucaristia, e a descida do Cristo da cruz, que remete ao seu sacrifício e papel como salvador da Humanidade. Ou seja, o conjunto de imagens mostra aos fieis que o único caminho da salvação é através do Cristo e sua Igreja.
Anunciação
A descida da Cruz
Cristo na abside, logo acima do altar.
Durante a Revolução Francesa e o processo de laicização e destruição de imagens que acontecia na época, a igreja se tornou uma granja e depois foi abandonada, antes de voltar ao seu uso inicial. As imagens foram redescobertas pelo padre J-B Périgaud, em 1849, sob uma camada de cobertura de cal que descascava, sendo classificada como Monumento Nacional em janeiro do ano seguinte.
Bibliografia:
BARRAL i ALTET, Contre l’art roman? Essai sur un passé réinventé, Paris, Fayard, 2006.
BASCHET, La civilisation féodale. De l’an mil à la colonisation de l’Amérique, Paris, Flammarion, 2006.
Compre esse livro aqui.
BASCHET « Le décor peint des édifices romans : parcours narratif et dynamique axiale de l’église » in P. PIVA (Dir), Art médiéval : les voies de l’espace liturgique, Paris, Picard, 2010.
BASCHET, L’iconographie médiévale, Paris, Gallimard, 2008, p.67-101.
Compre esse livro aqui.
LE GOFF, Un Moyen Âge en images, Paris, Hazan, 2000.
Compre esse livro aqui.
HOURIHANE, Looking Beyond: Visions, Dreams and Insights in Medieval Art & History, Princeton, Princeton University Press, 2010.
KUPFER, « L’étude globale d’un décor : L’église de Saint-Martin de Vicq » in Peintures murales romanes : Méobecq, Saint-Jacques-des-Guérets, Vendôme, Le Liget, Vicq, Thevet-Saint-Martin, Sainte-Lizaigne, Plaincourrault. Ministère de la culture et de la communication, Inventaire général des monuments et richesses artistiques de la France, Région du Centre, Orléans, Association régionale pour l’étude du patrimoine, 1988, p. 50-61.
KUPFER, Romanesque Wall Painting in Central France: The Politics of the Narrative, New Haven/London, Yale University Press, 1993.
KUPFER, « Spiritual Passage and Pictorial Strategy in the Romanesque Frescoes at Vicq » in The Art Bulletin, Vol. 68, No. 1 (Mars, 1986), p. 35-53.
OTTAWAY (dir.), Le rôle de l’ornement dans la peinture murale du Moyen âge, atos do colóquio, Saint-Lizier, 1 – 4 junho 1995, Poitiers, Centres d’études supérieurs de civilisation médiévale, 1997.
PALAZZO, Liturgie et société au moyen âge, Paris, Aubier, 2000.
PIVA (Dir), L’arte medievale nel contesto (300-1300) : funzioni, iconografia, tecniche, Milano, Jaca Book, 2006.
PIVA (Dir), L’esprit des pierres, Paris, CNRS, 2008.
REVEYRON, V. ROUCHON MOUILLERON, L’ABCdaire de l’art roman, Paris, Flammarion, 2000.
É. VERGNOLLE, L’art roman en France : architecture, sculpture, peinture, Paris, Flammarion, 1994.
Compre esse livro aqui.
Links:
DURLIAT, Marcel, « Art Roman », Enciclopaedia Universalis, [Online], http://www.universalis-edu.com.domino-ip2.univ-paris1.fr/encyclopedie/art-roman/ (Consultado em 05/03/2012).
« Église Saint-Martin de Vicq », Base Mérimée, [Online], http://www.culture.gouv.fr/public/mistral/merimee_fr?ACTION=CHERCHER&FIELD_1=REF&VALUE_1=PA00097413 (Consultado em 11/03/2012).
Isaïe 6, Nouvelle Édition de Genève, Bible Gateway, [Online], http://www.biblegateway.com/passage/?search=Ésaïe+6&version=NEG1979 (Consultado em 24/03/2012).
Fonte das imagens:
https://fr.wikipedia.org/wiki/Fresques_de_l%27%C3%A9glise_Saint-Martin_de_Vic
Panorama por Jean-Pierre Wantz
http://www.360cities.net/image/nohant-vic-st-martin#358.40,-30.80,50.7
http://www.terres-romanes.lu/nohant_vicq_2.htm
htttp://www.art-roman.net/nohant/nohant.htm