Confundem-se entre canções e gestos, quereres e prisões às relações entre o filme “Hoje eu quero voltar sozinho” e o CD “As quatro estações”, da Legião Urbana. O álbum, talvez o mais inspirado poeticamente da banda, de alguma maneira dialoga com questões que estão a permear o cenário do filme em questão. O diretor Daniel Ribeiro ousou misturar em sua película temas deveras alarmantes para uma sociedade contemporânea em pleno estado de transição. O álbum referido também se refere a questões de transição. Tratou-se com o personagem Leonardo (Guilherme Lobo), de temas como deficiência visual, homossexualidade, amizade, adolescência, primeiro amor, problemas entre pais e filhos, amores, transições.
Interessante como o filme se encontra não apenas com canções da banda, assim como também como se encontra com temas da vida real do próprio Renato Russo, que não tivera problemas com deficiência visual, porém enfrentou uma enfermidade que o colocou na cama durante largo tempo. Leonardo tem uma amiga que de alguma maneira faz a ponte do mundo visto para o imaginado. Renato também possuía essa amiga que fazia a ponte entre o poeta e um mundo dito mais cruel, menos poesia que Renato, mais asfalto que flores.
Assim é que percebemos esses encontros. Trata-se de um filme de transições. Momentos de transição. Isso pode ser percebido quando o diretor inclui várias cenas trazendo água. A sensação entre o seco, o visto, o molhado, o não visto. A água que corre, a solidez que freia. Isso nos parece uma remissão aos valores que sustentam a rigidez de uma sociedade que ainda não quer enxergar o amor como fonte das relações e ainda lega isso a questões religiosas e de gênero. Não que o amor não deva ser tratado como religião, mas obviamente que sem conotação cristã. Pois, “é só o amor que conhece o que é verdade.”
“Às vezes faço planos, às vezes quero ir, pra um país distante.” Verso de Renato Russo na canção “Maurício”. Enquanto isso Leonardo solicita aos pais a possibilidade de realizar um intercâmbio. Cambiar entre pessoas diversas. Desencontros, adolescência que surge. “Quando não estas aqui, sinto falta de mim mesmo…”, nascem amores, e como são novos, cadentes, querem ser um só, como na alegoria sobre o amor no Banquete de Platão.
“Ontem faltou água, anteontem faltou luz”. Leonardo não enxergava. Mas “palavra é o que o coração não pensa”. O menino era impelido pelos colegas a beijar uma garota, como ocorre na normatividade heterossexual impressa na sociedade. Os conflitos ocorriam ali. Não havia interesse. Não havia sentido. Nas palavras Gabriel (Fabio Audi), entre uma amizade que o ajuda a caminhar, no entremeio da narrativa do mundo, entre cheiros e toques, o adolescente descobre o que seria talvez o amor. A cegueira o ajudava a não ver diferenças. Essa deve ser outra boa observação. Essa uma alusão a mostrar que a relação humana independe de gênero.
É claro que o descompasso de Leonardo, literal e amoroso, evidencia a necessidade de pluralidade nas relações humanas. Em outra canção Renato nos pediria a explicação para a invenção do amor. Ele por certo não estaria ligado a questões de gênero. Quando Leonardo claudica entre a infância – na qual sua mãe ainda o queria manter – e a juventude que borbulhava dentro de si, nos encontros com Gabriel e se mostrava em seu próprio desenvolvimento físico. Restara mais uma reflexão do filme, os recalques que os pais imprimem nos filhos aquando de sua formação. Pais e Filhos. O Renato Russo junto com a Legião Urbana também cantara isso. Fugia de casa. Precisava de colo. Morava com os pais. Mas sempre o conflito. A adolescência como local de passagem. Da criança para o jovem. Do hétero inventado para o homo real. Da infantilidade dos pais para uma sua adolescência enquanto educadores de si mesmos. Diria Renato Russo, morar na rua, em qualquer lugar. Todos os lugares imaginados por Leonardo. Sonhados dentro de sua escuridão sincera e amorosa.
Quando nasce o verso “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”, há também o nascimento de Leonardo. Ele resolve voltar sozinho. Sem os preconceitos. Sem a escuridão. Com a voz do amor, Gabriel. Com a luz do “sol que bateu na janela” do seu coração, percebeu que o caminho não era o dito, mas o sentido pelo coração. Ele esperou, sem saber, seu amor passou, parou e ali inaugurou um tempo. De meninos e meninas. Como o amor, o tempo de Leonardo foi úmido. Sem lugar. Cego. O que menos importa é com quem Leonardo voltará pra casa. Certo é que voltou, sozinho dos outros, pleno de si. Inundado de imaginação maior que meninos e meninas. Do tamanho do sentimento de amor, sem pronome, sem pronomes, todas estas últimas, pequenas coisas…”tudo deve passar…”
“E dai de hoje em diante todo dia vai ser o dia mais importante”