E se fosse possível escrever para esquecer? Penso em algo como descarregar lembranças numa folha em branco. Na medida em que se escreve, as memórias ali postas ficam. Apenas ali e não mais na mente do autor. Esvaem-se todas as recordações, que a partir da transposição mente-papel já não mais assim seriam, pois deixariam de ser. Pela tinta da caneta ou pelas teclas do computador, o processo de transferência ocorreria, transformando o outrora preenchido por alguma imagem, estática ou em movimento, ou até mesmo um som, num retumbante vazio. Esquecimento realizado com êxito. Não haveria mais o ali presente, na mente. Somente no papel ou na tela do computador.
Será que esse processo de esquecimento seria buscado por alguns? E quem quisesse realizar o procedimento, faria apenas a título de teste? Quais memórias optaria por descarregar – tragédias e tristezas ou momentos felizes e boas recordações? Erros do passado que atormentam o indivíduo fariam mais sentido numa folha guardada com esmero em uma gaveta? E qual o sentido de se aprender com algo se esse algo fosse esquecido? A ideia não é justamente que a memória implique num desconforto diante da pretensa proposta de que se aprenda algo com isso? Mas e o que dizer da vítima desses erros? Seria justificável a sua opção pelo esquecimento? Transpor todas as lembranças de um episódio que marcou negativamente a vida de alguém para um arquivo salvo num computador seria uma boa forma de se resolver o problema? A escrita como ato de esquecimento seria alvo válido? Bom ou ruim?
Talvez isso já seja possível, figurando como uma espécie de segredo que é guardado e reservado apenas para alguns poucos dignos dessa façanha. Se assim for, o fenômeno poderia ser considerado como uma bênção ou uma maldição?
Escrever como ato de libertação – dito aqui enquanto esquecimento – é algo que já se fala na escrita. Escreve-se para esquecer. Mas assim se diz mais num sentido figurado do que literal. O autor não esquece de imediato tudo aquilo que descarrega no texto. Até mesmo porque é preciso, para dar corpo ao texto, que uma mínima coerência linear seja mantida, e a lembrança daquilo que se está a colocar por escrito é o que mantém esse fluxo de ligação entre o começo, o meio e o fim. É dizer que o todo, pensado previamente ao texto, por mais que inacabado na mente do autor, é o sopro que dá vida ao texto. Durante o percurso, muito pode acontecer – outros caminhos, mais longos ou atalhos, podem ser tomados, ensejando inclusive na chegada em um destino diferente daquele pretendido no início da caminhada. Mas os passos, pelo menos eles, são sempre planejados antes. Se não planejados, pelo menos pensados, imaginados. É pela memória disso, desse todo, de sua lembrança, que a escrita se faz possível. Seria impossível esquecer o todo na exata medida em que se escreve. Talvez depois, estando completo o texto, o apagar da lembrança fosse possível, não sem antes que o autor lesse e revisasse o próprio texto, evitando que falsas memórias ou insuficiências ficassem indevidamente eternizadas no escrito. Mas aí se teria um outro problema, pois como garantir que a transposição da memória para o papel fosse realizada fielmente ao registro mental? Para além da problemática de a memória não condizer integralmente com a realidade, sobraria ainda espaço para a discussão sobre o que fazer com as máculas, intencionais ou não, presentes no texto diante da forma com a qual o autor escreve suas próprias memórias que seriam então esquecidas. Ora, se a pessoa quisesse relembrá-las, ou melhor, conhecê-las novamente, uma vez que teriam sido esquecidas e a leitura se trataria de uma espécie de apresentação primeva do autor a uma “nova” história, tratar-se-ia de uma outra coisa que não aquela lembrança de outrora, pois não há como garantir a fidelidade do texto à lembrança do esquecido. Qualquer tipo de “prova real” da coisa seria impossível, pois não haveria mais memória para ser comparada com a escrita – uma coisa seria a outra, mas não necessariamente a mesma em que foi baseada. Problemas que sobrariam – e aqui são registrados desde já para que se tenha ciência quando da existência de algo nesse sentido.
Escrever para esquecer: há quem o faça – mesmo que num sentido figurado, num aspecto simbólico, como forma de representação com o fito de libertar a alma. Escreve-se para que o texto disso resultante represente a memória da qual o autor agora se vê liberto. Mas sempre permanece uma sobra, um traço, mesmo que mínimo, da própria lembrança que se buscou fugir.
Escrever para manter uma memória presente ou escrever para esquecer?
Fonte da imagem:
https://steemitimages.com/DQmYCGL91JEu17AEtdfHsFsCNw7y8znyxh2bXJuxS46Up6c/esquecer.jpg
Compre os livros do autor aqui (comprando qualquer produto através desse link, você ajuda a manter o site e não paga nada a mais por isso!)