A cidade é Beirute, no Líbano. Cinco mulheres um tanto quanto diferentes, mas que compartilham muitas coisas em comum se encontram regularmente em um salão de beleza da cidade, em cuja placa de entrada caída e torta lê-se Sibelle. É nesse contexto no qual se passa o enredo dessa história leve, divertida e sensível, um recorte do que é ser mulher na Beirute contemporânea – machista, conservadora, mas de grande flerte com a cultura Ocidental, como há tempos o é.
Somos apresentados às carismáticas personagens Layale (interpretada pela talentosíssima Nadine Labaki, diretora e roteirista do filme), Nisrine (Yasmine Elmasri), Rima (Joanna Moukarzel), Jamale (Gisèle Aouad) e Rose (Sihame Haddad). As cinco formam uma espécie de microcosmos e tratam do tema ser mulher em uma sociedade que se tornou miscigenada, com suas diferentes tradições e vivências femininas ocupando o mesmo espaço. Os principais temas que percorrem suas vidas e o salão que nos são apresentados são o combo amor, sexo e relacionamentos.
Layale é uma jovem e bela mulher cristã que tem um caso com um homem casado. Obcecada por essa relação na qual ela é a outra, é tomada por uma neurose sobre a identidade da esposa de seu amante, ao mesmo tempo em que sofre por não estar ao lado dele. Ao mesmo tempo, demora a perceber a forte paixão que um policial nutre por ela, um rapaz francês e doce que a ajuda em algumas situações ao decorrer da história. Nisrine é ainda uma moça muito jovem, de família muçulmana e que mora com os pais. Prestes a se casar, sua preocupação rege em torno do fato de ela não ser mais virgem e não saber como comunicar ao seu noivo sobre isso. Rima trabalha no salão e é uma mulher reservada que sente atração por mulheres e que não se encaixa nos estereótipos de feminilidade, apesar de trabalhar diretamente com isso. Jamale está na idade da menopausa e tem uma fixação divertidíssima com a menstruação, pois morre de medo de envelhecer e sonha em ser atriz; sua relação com a aparência e com a necessidade de seguir padrões é cômica, embora um pouco trágica, por se tratar de uma reação comum das mulheres ao envelhecimento. Por fim, temos Rose, que renuncia sua vida amorosa e o cuidado consigo para cuidar de sua irmã mais velha, cuja história permanece um pouco obscura – o que podemos entender é que provavelmente ela foi abandonada por um noivo e não se recuperou mentalmente do choque até o tempo em que se passa a narrativa, necessitando de um cuidado especial.
O nome do filme remete à prática de depilação com caramelo oferecida no salão. O caramelo, além de doce, nesse caso também provoca a dor resultante de um procedimento estético. Ou seja, muito da proposta do filme pode ser lida nessa metáfora: o sabor do doce é tradicionalmente reconhecido como o sabor do amor; a dor de retirar os pelos também é proveniente dessa “dor de amor”; e a finalidade estética revela essa preocupação, um tanto quanto opressora de um sistema machista, com a aparência, a beleza, a necessidade de encaixarem-se em um padrão. Essa característica é comum a todas elas: cada uma protagonista de sua história particular com temas-chaves sobre relacionamentos, mas nenhuma delas realmente está dento de um padrão, de um modelo de ideal, independentemente da cultura. De alguma maneira, elas sofrem por causa dessa perseguição a um padrão, mas acabam, com sua força e independência, com sua autonomia e poder de escolha, decidindo sobre seus próprios destinos e tendo seus “finais felizes”, finais possíveis dentro de uma cultura que impõe, veementemente, modelos femininos a serem seguidos.
A opressão sofrida pelas mulheres nesse filme não é tão evidente ou chocante para uma espectadora do Brasil, imagino, pois não se difere tanto do que se passa por aqui. É de se pensar que há quem assista a obra e nem perceba que essa é uma das principais questões tratadas. Acredito apenas que a ortodoxia de costumes seja mais acentuada em Beirute do que aqui. No filme, essa opressão é retratada como todos os outros problemas abordados: com delicadeza. A mulher parece ser tratada como uma pérola, uma flor, uma joia – mas, ainda assim, uma propriedade. Há muito em comum com as questões das mulheres no Brasil, como, por exemplo, a obsessão pela cultura da imagem e da aparência, a necessidade de exteriorizar um alguém que corresponda às expectativas sociais estruturadas em um modelo machista.
É muito interessante observar como cada personagem realiza sua própria jornada da heroína, por meio do reconhecimento de si mesma, de suas particularidades e identidade e ao prezar pela união. O filme, inclusive, é encerrado com a cena de uma mulher que, às vezes, frequenta o salão, claramente interessada por Rima, após ela finalmente tomar a coragem de cortar seus longos cabelos, em um grito por autoestima e aceitação, quebrando padrões de beleza que ela mesma diz serem fundamentados nas crenças da família. Ela última cena demonstra esse tema central das aparências e sobre como encontrar uma maneira de se expressar mediante uma cultura cada vez mais retrógrada. No caso, a jornada da heroína pode ser considerada então como a narrativa da mulher que, ao se deparar com a pressão externa sobre sua identidade, se depara com sua real identidade lida com isso da sua própria maneira.
Sobre o aspecto artístico-visual do filme, é bastante coerente com a proposta do filme, já que mantém tons sóbrios, discretos, em uma paleta que segue tonalidades marrom-alaranjadas, o que faz alusão, inclusive, ao caramelo. Labaki trabalhou com uma sensibilidade muito bonita ao tratar de temas tão delicados, que muitas vezes podem parecer cômicos, mas que também geram uma profunda reflexão sobre a tristeza de não se sentir amada, de não se encaixar. O tom sóbrio das cores combina perfeitamente com a seriedade que se pretende, mesclando com nuances de roxo e rosa, o toque mais “feminino”, também um pouco mais lúdico.
A edição do filme também é ótima e faz toda a diferença na montagem das narrativas particulares. Há frames que parecem quadros: muito bem montados, totalmente expressivos, simbólicos, comunicativos. Cada gesto, sorriso e toque tem um significado forte e leve ao mesmo tempo. Cada close tem sua profundidade bem articulada com os momentos mais singelos. É extremamente expressivo.
As atuações de todas as personagens merece destaque; são todas extremamente sensíveis na captação da profundidade de cada uma. As personagens masculinas também trabalham muito bem no filme. A cena do policial em sua sala declamando declarações não ouvidas pela personagem de Nadine é uma das mais singelas do filme. Os momentos entre o senhor apaixonado por Rose e a mesma também demonstram muito delicadamente o processo, por vezes confuso, da paixão na terceira idade.
Curiosamente, a verba do filme veio de um edital de fomento a produções de novos cineastas, que incentivava primeiros ou segundos filmes de diretores iniciantes. Nadine Labaki foi selecionada e exigiu que todos os atores fossem inexperientes para dar um tom mais realista ao enredo. Ela mesma escolheu e convidou pessoas na rua e as convidou para participarem da produção. E deu muito certo.