Escrever o âmago

Muitas vezes, sentar e escrever não é suficiente. Sabe quando você precisa definir o ponto, encontrar a resposta da questão que atormenta a sua mente, apontar para a coisa que paira sobre ti, livrar-se daquilo que se ancora em seus ombros? Você tenta, você se esforça. Desliga-se de tudo. Calmaria. Mas a tempestade que atormenta o seu íntimo não deixa que a coisa saia e seja presa nas palavras. A escrita é insuficiente para captar a essência. Faltam palavras. Talvez elas nunca tenham sido suficientes.

Palavras são belas, mas traem. A precisão é uma pretensão que funciona somente até certo ponto. Dá certo nos contos, nos romances, na poesia, nos relatos, nos documentos oficiais – cada qual ao seu modo, com suas próprias características, funções e pretensões. Mas há casos em que as palavras são insuficientes. Elas não bastam, pois não capturam o que se sente. O problema é tamanho que nem mesmo na mente há uma ordem concatenada de um determinado pensar, pois se tenta estruturá-lo a partir das palavras, e por elas não darem conta do todo, resta e fica o imbróglio mental. Daí a confusão que é surgida a partir das fracassadas tentativas de interpretar a si próprio, de realizar uma espécie de autoanálise, de dar ordem ao emaranhado de pensamentos que se tenta traduzir para as palavras. E é isso que fica, a confusão, e nada além. Ou até há algo depois disso, caso se considerem os efeitos resultantes dessas tentativas frustradas de compreensão através das palavras, pois aqui poderiam ser apontados o torpor, a aflição, a angústia, o desespero, a estupefação e a total ausência de direcionamento como consequências resultantes dessa impossível tarefa.

Traduzir o pensar em palavras é algo digno. Um trabalho hercúleo em muitas situações, requerendo envolvimento e comprometimento. Mas até mesmo para os mais sensitivos, emotivos, vocacionados, aptos ou como preferirem chamar, existe um limite intransponível. A escrita liberta, fala muito do que reside no campo do indizível para a maioria, mas, ainda assim, é insuficiente. Não se dá conta do todo pelo uso de um meio, de uma forma, de um artifício, de um algo que se cria ou se traduz. Existe uma barreira que funciona como uma rede, uma espécie de peneira, que não deixa que certas coisas passem. É o caso da palavra, da escrita, que acaba ficando presa nesse marco. Por mais que se queira, que se esforce, que se tente, o fracasso é certo!

Talvez a ambição em capturar a alma daquilo que se tem em mente continue a mover o trilhar da escrita ousada. Acaba sendo um algo necessário, pois por mais impossível que seja o alcance do âmago com sucesso, de modo que os resultados podem muitas vezes ser considerados como desastrosos quando comparados com a sua pretensão, não se pode dizer que a consequência ali tida como algo a ser lido seja ruim, banal ou fracassada. Quiçá aí se situem boa parte dos grandes textos. Ora, se o destino no qual se chegou pelo caminhar na trilha não foi aquele imaginado quando do início da jornada, e nunca será, tem-se como feito algo que não pode ser desconsiderado: o caminho pelo qual se passou, os passos dados e a clareira existente no final dessa trilha. É algo que não aquele, mas é algo. Fez-se algo. Tem-se algo. E isso basta!

Assim, o fracasso constitui, muitas vezes, um sucesso. O autor, claro, jamais assim verá. Ele precisa da sensação incômoda de incompletude para que continue movendo os seus dedos que resultam nas palavras escritas. Eis o paradoxo da coisa: o fracasso resulta, muitas vezes, em sucesso, por mais que jamais seja assim entendido por aquele que se lançou ao desafio. A angústia pelo não êxito é condição de possibilidade para que novas palavras, juntas, formem-se, erigindo uma escrita que acaba por atingir bem no meio do peito diversos leitores que compreendem aquilo como algo fosse, por mais que não seja. O sentido é dado, ou é criado, ou ainda, é interpretado. De um lado, o desprezo pela cria, ou a indiferença. De outro, o êxtase pela contemplação de algo sublime, ou o maravilhar-se com o belo. Tem-se assim um dos possíveis resultados da incessante busca pelo cerne.

Escrever o âmago: tentamos e tentamos, mas nunca com sucesso. Alguns se aproximam, outros não chegam nem perto. Mas a coisa lá permanece, refletindo sua luz para que novos aventureiros se lancem numa empreitada ao seu alcance, fazendo assim com que a roda gire.

Giremos a roda!


Fonte da imagem:

http://novosalunos.com.br/wp-content/uploads/2016/05/Por_que_%C3%A9_importante_escrever_bem.jpg-750×410.jpeg

 

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