Se as palavras não dizem o todo, pois elas faltam, é delas que me valho, pois me servem, nos servem. A incompletude é o máximo que se atinge ao tentar dizer todas as coisas com as palavras, é verdade, mas, ainda assim, é por meio delas que se chega a um algo. O dito é expressado por meio delas, as palavras, e, por mais que insuficiente, é com isso que se transmite o que se quer dizer. Transmite-se e se recebe – com isso algo se faz.
Se é certo que nem tudo é possível traduzir por meio daquilo que se diz, que se escreve, também é certo que a palavra é a melhor forma de se externalizar aquilo que precisa ser dito. Nem tudo é possível, assim como há coisas que são melhor traduzidas através dos gestos, das atitudes, do olhar, do silêncio e até do próprio pensar que ali na mente nasce, reside e morre. Mas o fato é que a palavra é uma das nossas maiores invenções. Elas alcançam aquilo que seria impossível de se demonstrar de outro modo. Elas constituem uma forma de exposição de um algo que antes não existia, e que partir do momento em que se constituem, criam outras coisas a partir de si, para além daquilo no qual se firmou e se constituiu, que avança, que arrebata, que cativa, que significa, que rompe, que viaja, que bate.
Cria-se a partir de um pensar, mas quando posta no papel, já é outra coisa que não aquela que se imaginou. Da forma como estabelecida, a palavra dá um novo corpo, próprio, para um sentimento, para uma emoção, para um ato, para uma imagem, para um fenômeno, para uma visão. É do encanto que a nova coisa surge e passa a agradar os olhos do leitor – como é possível que algo possa ser tão mágico?
Consegue imaginar um mundo sem as palavras? Talvez os gestos, os murmúrios, os olhares e as expressões da face fossem elencados a uma categoria substitutiva da palavra escrita, fazendo as vezes do que já não mais pudesse ser dizível. O indizível seria representado pelas outras formas já existentes de se expressar, as quais receberiam um novo patamar – mais alto, mais importante. Mas existiria aí um vazio insubstituível: para além de toda a problemática pragmática inerente de um mundo sem palavras, estando ausente a mágica do encanto, da beleza, da formosura, o mundo seria mais opaco e insosso. É que há coisas que somente podem ser ditas pelas palavras, não havendo qualquer tipo de substituição possível. Não há o que colocar em seu lugar. O lugar de pertencimento da palavra é destinado tão somente à esse modo de se expressar. Não há encaixe possível para qualquer tipo de substituto. A palavra é um algo único, indizível de outra forma.
Como contar as desaventuras de um solitário desafortunado que enfrenta o fatídico cotidiano do trilhar de sua insignificante jornada na terra que não por meio das palavras? Como expressar aquilo que poucos conseguem captar e transmitir através da poesia que não pelas palavras? Como narrar histórias de vida, reais ou fictícias, empolgantes ou desinteressantes, longas ou curtas, floreadas ou objetivas, que não por meio do uso das palavras? Como fazer um pedido rebuscado que não pelas palavras? Como refletir profundamente, questionando a vida, o universo, o agir, o consenso, a sociedade e o próprio pensar que não através das palavras? Um mundo sem palavras é um mundo que sequer pode ser imaginado pelas palavras. Um mundo sem palavras é um não mundo.
Talvez o título desse texto devesse ser outro. Mas aí as palavras poderiam acabar ganhando uma importância para além daquela que é justa. Sim, pois as palavras também enganam e não conseguem dizer o todo. Mas, ao mesmo tempo, é somente através delas que muito do que se pode pensar como existente é possível. Daí o destaque necessário dado, cuja importância está aqui explicitamente reconhecida. Não se quer apenas pender para a rendição total. O que se quer deixar aqui pontuado é justamente a ideia presente na frase-título: pode até ser que as palavras não bastam para o todo, pois não o comportam – já que tudo é limitado ao todo (exceto pela ideia do próprio tudo ou todo, que também é impossível de ser alcançado pelo pensar – a não ser na forma de contemplação submissa de uma ideia geral). Mas é delas que me sirvo para tudo. Portanto, me são úteis, necessárias e indispensáveis para todo e qualquer agir, pois expressam, dizem e criam tudo aquilo que sequer existiria no caso de um mundo em que não existissem.
A palavra é condição de possibilidade. Para muito, elas nos servem, pois nos servimos delas para que algo se constitua a partir daquilo que é pensado também por meio delas.
A magia das palavras: delas me sirvo, pois elas me servem.
Fonte da imagem:
https://rodrigogurgel.com.br/wp-content/uploads/2017/02/o-escritor-e-as-palavras.jpg
Compre os livros do autor aqui (comprando qualquer produto através desse link, você ajuda a manter o site e não paga nada a mais por isso!)