(Re)ver a um filme de Stanley Kubrick (1928-1999) é sempre um prazer enorme. Prazer ao avesso, já que enquanto em sua obra brilham a composição imagética das cenas, a direção segura, a potência de crítica e a inovação formal, engendra, por outro lado, uma violência crua e direta difícil de engolir. Para piorar a situação, essa violência quase nunca se mostra de maneira realista, ao menos nos seus melhores longas.[1] A obra de Kubrick é facilmente dividida em duas: uma até Dr. Fantástico (1963) e outra a partir de sua obra-prima 2001: uma odisseia no espaço (1968). Trataremos aqui do grande filme Laranja Mecânica (1971), filme subsequente a 2001, o que significa dizer que o diretor já contava com toda técnica e experiência que o permitiu dar a virada em sua obra. Pelo espaço deste texto, a discussão sobre as diferenças entre as fases seria impossível e desnecessária; basta assinalar que a segunda fase, da qual deriva Laranja Mecânica, se caracteriza por traços gerais, como: a) a renúncia a certo realismo, ou a um realismo imediato (como são os casos de Laranja Mecânica, do derradeiro De olhos bem fechados, além de 2001 e O Iluminado); b) são todos longas coloridos – e as cores em Kubrick fazem toda a diferença; c) não são roteiros próprios do diretor, mas adaptados. Feitas estas considerações, o presente trabalho irá trabalhar a partir da ótica da abordagem psicológica chamada Behaviorismo, mobilizando alguns de seus conceitos, tendo como eixo o filme e as discussões que este propõe. Tendo isso como centro, abordarei também de maneira secundária o contexto histórico e opções formais do filme considerando que, se pensado tudo de maneira articulada, talvez tenhamos um panorama interessante de análise do filme.
O longa é de 1971, período de Guerra Fria, tensão e polarização política na Europa e nos Estados Unidos (já muito bem ilustrado em Dr. Fantástico, 1963), para ficar nos centros decisórios; é tempo também em que o neoliberalismo começa a se consolidar, chegando ao auge, na Inglaterra por exemplo, em 1979, com a chegada de Margaret Thatcher ao cargo de primeira-ministra. A década de 70 foi palco também, segundo Paul Duncan, de um crescente nível de violência em Nova York, cidade na qual residia Stanley Kubrick.[2] Isso é importante pois, como diria Theodor Adorno, todo objeto estético é processo social decantado.[3] Aqui temos uma chave para pensar esse e outros filmes de Stanley Kubrick: não é à toa a potência de violência – e por conseguinte a sua crítica – nos filmes do diretor, em especial os da segunda fase, com acento especial em Nascido para matar (1987). Em Laranja Mecânica, todos os comportamentos são extremamente violentos, desde Alex e seu grupo de droogs estuprando e espancando mulheres, moradores de rua e pessoas em geral, à estrutura familiar do protagonista, que dá mostrar de ser desequilibrada certamente por razões sociais (a ironia aqui é ter a mãe como uma empregada de fábrica em meio a um espaço geopolítico distópico). Isso sem esquecermos a cadeia pela qual passa e seu comandante com bigode à lá Adolf Hitler – não seria ir muito longe ler o filme como uma crítica ao fascismo, tematizado por Alex DeLarge e seu comportamento de extrema violência. Também tem o posterior tratamento, o Ludovico, representando um lado do Behaviorismo, que teoricamente poria Alex novamente no seio da sociedade, regenerado como um cidadão de bem, mas que o violenta e o adestra, como um objeto, uma mercadoria. Aqui já podemos ver que o debate sobre a violência extrema, suas causas e implicações na sociedade, bem como programas necessários para controlá-la estão no centro de nossa análise e do filme em questão.
O Behaviorismo é uma abordagem da psicologia que se pauta pelo empirismo e não mais pelo inatismo, como a Gestalt fez anos antes. Não se pensa, então, que o sujeito detém a priori estímulos que determinam seus comportamentos, mas o contrário, que é do meio de onde vem os motores para o comportamento dos indivíduos. É uma lógica sintetizada em: S (estímulo) è R (resposta). É uma ciência que tem como objeto de estudo o comportamento observável. Dedica-se “ao estudo das interações entre o indivíduo e o ambiente, entre as ações do indivíduo (suas respostas) e o ambiente (as estimulações).”[4] Dentre outros conceitos e observações de que não usarei nessa análise, são importantes os: comportamento reflexo/respondente, o comportamento operante, o pareamento e a fuga. “O comportamento reflexo ou respondente é o que usualmente chamamos de “não-voluntário” e inclui as respostas que são eliciadas (“produzidas”) por estímulos antecedentes do ambiente.”[5] Esse tipo de comportamento independe de aprendizagem, por exemplo, quando cortamos cebola e lacrimejam nossos olhos. Já quando é operante:
“Neste caso de comportamento operante, o que propicia a aprendizagem dos comportamentos é a ação do organismo sobre o meio e o efeito dela resultante — a satisfação de alguma necessidade, ou seja, a aprendizagem está na relação entre uma ação e seu efeito.” (BOCK, 2001, p. 48)
O pareamento, por sua vez, se junta ao comportamento operante visando moldar certo comportamento: “A essas novas interações chamamos também de reflexos, que agora são condicionados devido a uma história de pareamento, o qual levou o organismo a responder a estímulos que antes não respondia.”[6] Esse procedimento juntará duas razões em um ato; dois estímulos terão o mesmo sentido sensorial no sujeito em questão. Por último, a fuga, que é uma tentativa de fugir, respondendo então a um estímulo, nesse caso negativo, em geral visando o bem próprio do indivíduo que sofre algo.
Em dois momentos do filme são ditas duas coisas oportunas: alguém, em certo momento, diz que a prisão é um zoológico humano. Para ser um zoológico, pressupõe-se certo adestramento dos animais que lá se encontram, certo ordenamento no local. A outra coisa é quando o diretor do presídio diz que, para ele, as situações se resolvem no “olho por olho”, o famoso código de Hamurabi, cuja vigência se deu há pouco mais de 2019 anos. São fatos importantes pois dialogam diretamente, convergindo ou não, com o Behaviorismo: se alinha quando sugere adestramento, porque é um pouco isso que o tratamento faz, quer-se ou não; se distancia quando se fala em código de Hamurabi, já que a proposta behaviorista é de aprendizado visando relações mais saudáveis – neste caso e quando orientado humanisticamente.[7] O procedimento no filme então começa quando Alex é posto em uma camisa de força e, com os olhos presos, passa a assistir a filmes cuja temática é a violência extrema que era praticada por ele e seus amigos. Durante a sessão, Alex passa a não se sentir bem, mas atribui isso às vitaminas e à comida nutritiva (sic) que comeu; depois de um tempo, começa a passar mal, porém, ainda sim era obrigado a assistir, não podia se mover ou fechar os olhos. Nesse momento sente uma náusea profunda – uma droga injetada gera paralisia como a morte no paciente, este sente um sentimento de terror e desamparo. É precisamente aqui, segundo o médico em questão, no momento de maior tensão vendo as imagens é que se descobre que o paciente fará “as associações mais proveitosas entre o catastrófico ambiente da experiência e a violência que presencia.” O médico é convicto de seu método. Quando numa sessão o filme em questão é acompanhado de uma trilha sonora não só familiar, mas cultuada por Alex, a 9ª Sinfonia de Beethoven, acontece o pareamento. Duas informações diferentes passam a representar para Alex uma mesma coisa, um mesmo sentido, uma mesma sensação. Há um alinhamento em que violência extrema, libido (com carga de violência) e a 9ª Sinfonia são justapostos. Ao serem pareados, quando Alex se depara com um ou outro, sente a mesma coisa: vontade de vomitar, causada lá no início, na primeira vez, quando do início do tratamento. (Há outro caso de pareamento secundário no longa, o do escritor que Alex espanca e cuja mulher estupra, ao ouvir “Singin’in’ the rain” – o pareamento acontece pois, quando Alex se prepara para estuprar a mulher e enquanto espanca o escritor, começa a cantar essa música, performando seu sadismo.) Ao sair da prisão, Alex sofre violência sem revidar de diversas formas até tentar suicídio e ser hospitalizado. Ali, ao fechar um acordo com o ministro que impulsionou o tratamento (Alex ganhando um emprego e boa remuneração, o Estado ganhando proteção contra os ataques da sociedade por ter financiado um tratamento daquele tipo), Alex ouve a fatídica música, tem pensamentos violentos e libidinosos na qual imagina um casal fazendo sexo e sendo aplaudido (sexo que soa como um estupro), e conclui – já que o tratamento muda a superfície e não a estrutura: “Eu estava totalmente curado.”
Há alguns pressupostos no filme que nos indicam marcas daquele universo representado e que nos fornecem uma base material de análise tanto do processo social no qual a forma foi decantada, mas também para a interpretação, a fins deste trabalho, do psicológico de Alex DeLarge. Um e talvez o mais claro de todos seja de que se trata de um filme com narração. Em geral, tende-se a pensar, de maneira correta por sinal, que filmes com esse recurso são filmes ruins, ou ao menos incompetentes em certo sentido, sendo o cinema uma forma majoritariamente visual. Quando alguém recorre à narração, isso pode ser como uma fragilidade da forma que não se sustenta somente com seu elemento principal de linguagem, a imagem. Mas aqui temos um dos poucos momentos do cinema em que faz sentido seu uso: Alex nos conta sua história, portanto, trata-se de uma narrativa em 1ª pessoa; além disso, nos conta coisas que aconteceram no passado, logo, trata-se de um tom memorialístico. Sendo assim, podemos falar que temos aqui um narrador implicado, que significa que é parcial – Alex conta sua história a partir de sua perspectiva e nada mais. Junto a isso, Kubrick utiliza um recurso que aprendeu com os vanguardistas dos anos 1960, das chamadas Nouvelle Vagues: Alex olha seguido diretamente para a câmera (vide a grande cena de abertura), quebrando a barreira ficcional e buscando no telespectador seu interlocutor e, em certa medida, cúmplice. É de se pensar em como, psicologicamente, interpreta-se esse tipo de situação. Alex parece querer validar, assim, sua vida e, por conseguinte, sua violência, dando mostras de certa banalização do mal.[8] Chegaremos a isso depois.
Outro ponto interessante e importante para a análise são as oposições, contradições, relações dialéticas postas no filme. A primeira delas, a que ergue o filme em sua estilística, é a oposição entre forma realista e forma, digamos, surrealista. Kubrick, como vimos, renega um pouco a abordagem realista que já fizera anteriormente em sua filmografia. Há uma necessidade de se reduzir a forma para chegar ao gesto realista por excelência, para decifrar com maior veracidade o mundo em que vive. (Luis Buñuel, conhecido diretor surrealista espanhol, diz sobre Laranja Mecânica: “(…) é o único filme que representa verdadeiramente o mundo moderno.”[9]) Talvez essa recusa ao realismo seja a forma específica de chegar à loucura, à insanidade, à violência do mundo contemporâneo. Não é à toa que, na cena em que entram em um galpão abandonado e outro grupo como os droogs violam uma mulher em cima de um palco, a subsequente briga de gangues é filmada com planos muito abertos, em um distanciamento que significa imprimir naturalidade àquela situação, criticando veementemente a situação de normalidade com a qual a violência é tratada. Outra oposição: desde o início acompanhamos a justaposição de música clássica, que nos dá impressão de civilidade, leveza, harmonia, contraposta à brutalidade em cena, à violência explicita que acompanhamos em vários momentos da narrativa (procedimento que certamente Coppola aproveitou para fazer o grande Apocalypse Now.) Também o sagrado e o profano são contrapostos em alguns momentos, mais explicitamente nas imagens de pequenas esculturas de Cristo junto a um ambiente profano. A própria família de Alex, que mostram preocupação com o filho, como se este fosse alguém dentro dos padrões sociais e o núcleo familiar fosse regular. Duas cenas mais além o filme demonstram esse desajuste: quando o advogado, logo em seguida à cena citada acima, conversa e recomenda a Alex que se cuida – a cena é ridiculamente bem construída, dando o nonsense kafkiano necessário para a obra; assim como, quando Alex retorna da prisão, em outra cena absurda, Alex vê seu quarto alugado e outra pessoa, Joe, passando ao lugar de filho sem um constrangimento maior que atrapalharia essa atmosfera. Oposição e certo deboche também das instituições, já que as interpretações sobre o tratamento Ludovico são motivadas por interesses políticos, independente do lado; também o hospital, que se espera ser um lugar sério, mas que enquanto Alex está na cama, médico e enfermeira fazem sexo no leito à frente. Por último, a oposição mais afiada posta por Kubrick: civilização e barbárie. Essa é uma discussão grande e que não farei aqui, apenas apontarei algumas linhas: a oposição entre modernidade urbana e tecnológica versus a barbárie da violência; os droogs que viram policiais no futuro. Há, como já disseram vários pensadores, uma reintrodução da barbárie na civilização, talvez potencializando-a ao se tornar mais institucional e burocrática. Todas essas oposições servem de corpus para Alex, que pode ser entendido como uma consciência em busca de um parâmetro, tendo na violência uma esquiva ou uma solução a seu problema? Segundo Paul Duncan, o último capítulo do livro de Anthony Burgees, que não foi adaptado para o cinema, continha a redenção dos personagens. “É como se o tempo de violência fosse uma fase passageira, uma parte natural do desenvolvimento humano.”[10] Percepção que não concordo já que trata a violência como fenômeno inato e não como produto social.
A partir do que falamos até agora, junto a três considerações – da psicologia, de Theodor Adorno e de Duncan – finalizarei com uma hipótese de interpretação. O Behaviorismo, de maneira consciente ou não, opera uma modelagem e, a partir desta, pretende chegar a um comportamento desejável. Para chegar a ele, a teoria se apóia no que chama de reforços, que podem ser positivos ou negativos.[11] Se a pessoa/animal fez certo movimento pretendido pelo psicólogo, dá-se um reforço positivo: um exemplo de aulas formais seria quando os alunos vão bem em determinado exercício e ganham uma bala como forma de incentivo na modelagem de um comportamento operante. Isso, no filme, é encarado pelo padre da prisão, que defende um tratamento mais humano, como absurdo, já que tira do indivíduo, depois do adestramento, a possibilidade de escolhas morais. Duncan diz que, no Laranja Mecânica o centro é o livre-arbítrio[12], o oposto que o tratamento Ludovico prega – este busca robotizar os indivíduos para que não atuem contra as leis (que são em si outras formas de adestramentos). Em “O artista como representante”, Theodor Adorno comenta Valéry e sua postulação de uma arte integral, que é, em suma, a representação de uma experiência humana verdadeira, canalizada pelo artista. Segundo Adorno, esta proposição de Valéry seria “a antítese às mudanças antropológicas que ocorrem no interior da cultura de massas na era industria tardia, guiada por regimes totalitários (…) preparando assim o caminho para um estado de dominação cega e nova barbárie.”[13] Este procedimento de reificação, ou seja, de tornar todos os sujeitos e todas as relações em coisas com valor de troca subjugadas ao capitalismo, converge em peso com o adestramento pressuposto pelo tratamento Ludovico: alienação e reificação na dissolução do sujeito moderno. Temos, portanto, alguns dados do processo social e da forma estética que nos ajudam a pensar o longa. A violência extrema e as oposições comentadas anteriormente podem significar uma consciência em crise em busca do livre-arbítrio, de uma direção, encontrada finalmente no adestramento do tratamento Ludovico, que não é mais do que o modelo de reificação do capitalismo tardio para as relações humanas. Para além disso, com os apontamentos sobre o fascismo e ao nazismo de Hitler, pode-se pensar na banalização e naturalização da violência na sociedade contemporânea, violência também expressa pelo embotamento das capacidades humanas de subjetivação pelo capitalismo. Os filmes de Kubrick são potencialmente criativos e múltiplos em significados; penso ter trazido elementos para interpretação deste grande filme.
Rodrigo Mendes
[1] Diz Martin Scorsese sobre De olhos bem fechados: “Muitas pessoas foram desestimuladas pelo lado irreal do filme (…).” SCORSESE, M. “Prefácio”. In: CIMENT, M. Conversas com Kubrick: Michel Ciment. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 19. Em vários filmes o diretor se vale de algo surreal. Seria exagero pensar o filme alinhado aos surrealistas?
[2] DUNCAN, P. “Como Stanley Kubrick conseguiu a independência através de um trabalho duro e determinação”. In: Stanley Kubrick: a filmografia completa. Taschen, 2013, p. 124.
[3] FISCHER, L.A. “Uma introdução”. In. LOPES NETO, J. S. Contos Gauchescos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012, p. 64.
[4] BOCK, A. M. B., FURTADO, O., TEIXEIRA, M. L. T. “O Behaviorismo”. In: Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 44-45.
[5] Ibid., p. 46.
[6] Ibid., p. 46.
[7] Interessante pensar que, no Laranja Mecânica, a educação se dá pela esfera simbólica dos filmes; Alex chega a dizer que só se enxerga as cores reais quando se vê por uma tela, em um comentário interessantíssimo para pensar também a cultura de massas sob a hegemonia da indústria cultural.
[8] Devo esse achado crítico a Evelin Padilha Vigil.
[9] BUÑUEL apud DUNCAN, op. cit., p. 129.
[10] Ibid., p. 129.
[11] Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=s4NM1kK5zUc> e < https://www.youtube.com/watch?v=UkrlNh90BFg>. Acesso em 10/04/2019 às 16:43.
[12] Op. cit., p. 134.
[13] ADORNO, T. “O artista como representante”. In: Notas de Literatura I. Tradução e apresentação de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012 (2ª edição), p. 162.