O filme ‘A pedra da paciência’ de Atiq Rahimi

Pedras não falam. As pedras sequer se movimentam por si mesmas. Como é possível a uma pedra se comunicar? O fenômeno da linguagem por certo não se encerra na linguagem falada. A audição não é privilégio de quem ouve. Ou não ouvimos o arrepio da pele quando somos tocados pelo som do amor? Qual a relação das pedras com o amor?

Talvez elas tenham mais encontros a partir dos desencontros do amor. Um amor que não ouve ainda assim é amor? Ou ao contrário, o amor se dá exatamente na medida do ouvido do outro? Seria nele, ao sermos recepcionados, que residiria isso que se chama amor? Amar é ouvir ou dizer? Em uma cultura da fala e tão arraigada no logos seria possível Emmanuel Lévinas? Ou o outro já está desde sempre soterrado pela nossa fala aprisionadora?

‘A pedra de paciência”. Nome da película do diretor Atiq Rahimi. Os nomes próprios e seus infinitos. Ainda mais quando esse nome nos é estrangeiro na construção cultural. Na própria maneira como é fundado o ethos. As pedras seriam o estrangeiro do humano? Inabarcáveis e ao mesmo tempo sorrateiramente presentes. Estrangeiradas de nossa linguagem e ao mesmo tempo obstáculos e inspirações para ela: “No meio do caminho havia uma pedra”. “A pedra de paciência” é uma lenda contada no filme que nos ensina que elas escutariam todos os nossos dizeres e quando elas se quebrassem, estaria a ocorrer uma dissolução de todos eles. Mas se é assim, se há uma espécie de vida auditiva nas pedras, o tempo talvez possa ser visto nelas. Enquanto os humanos enrugam as vidas e constroem seus dias, as pedras afinam, afiam, desbotam. Choram e até quebram. O fim das pedras pode ser também o início de um tempo novo. Sem pedras. Com outras pedras, posto que “pedras, pisam todos nós”. Assim versava Florbela Espanca.

Logo, quando no filme, uma mulher afegã, ou seja, que carrega em sua burca todo o sentimento e peso de sua tradição, dialoga com seu marido vegetando com uma bala na nuca, parece que a analogia resta colocada. Assim, e de aí em diante pensamos que de alguma maneira aquilo que Freud chamou de “livre associação” entre em cena. A Mulher (Golshifteh Farahani), que não guarda no filme um nome próprio, talvez para mostrar que as singularidades se esvaem dentro da cultura, narra ao Homem em estado de inércia, feito pedra, todas as aventuras de sua vida com ele. Interessante pois eles estavam casados há tempos. Assim, começamos a desvendar as questões, ora, as mulheres interditadas de fala, acabam por se construírem como seres sem narrativa. Ora, é do dizer que habita o humano. Assim, a pedra não seria desde sempre a mulher? Não seria ela essa pedra que ouvia o Homem e não podia nunca falar? Era habitada sexualmente por ele qual uma pedra que por vezes é usada para assegurar que os papeis não se percam. O amor é da arte do ouvir. Então as pedras seriam os seres mais cândidos e apaixonados.

A Mulher narra ao Homem sua própria existência. Ele no papel de pedra. Ela de construtora de si. Pode ser que o filme nos mostre a libertação da mulher. Que quando conta ao marido também se deita. Toma chá. Se colore. Antes a ela era interditada essa possibilidade. Quem não sabe amar faz guerra. Diria a Tia prostituta. O Homem nunca havia experimentado o amor até se tornar pedra.

No meio das palavras a Mulher revela ao Homem o quanto ele é frágil. O amor nos torna assim. Ele era infértil. A Mulher o havia amado, e num gesto de amor infinito, procura a Tia, que consegue para ela um homem para fertilizar seu ventre. “Te perdoo por te trair”. O peso da tradição não deixaria o Homem pensar assim. O Chico Buarque já escrevera sobre o morro Dois Irmãos. São pedras que guardam o tempo da cidade. Dilatam de histórias. Amam e esquecem para renascer amanhã. As pedras não têm memória. A não ser aquelas que contemos a elas. O humano não tem histórias. A não ser a da própria vida. Narrar a vida ali foi de novo nascer. Cada vez que contamos uma história construímos um novo tempo. Como são novas as pedras. Como sabem de alteridade as pedras. Aquele homem amou enquanto morria. Agora podemos acabar. A Mulher irá fatalmente enfiar uma faca no Homem. Ele irá para a eternidade. Não sem antes ter amado. Qual pedra. Mais humano do que sempre!

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