Crítica | Homens elegantes, de Samir Machado de Machado

Editora Rocco, 574 páginas.

Homens elegantes, do autor brasileiro Samir Machado de Machado, é uma obra imersiva sobre o Brasil Colônia, mas que podia muito bem ser sobre hoje. As coincidências entre a ficção e a realidade são de evocar o riso e a ironia em uma história muito viva. Entre os conflitos portugueses no Brasil Colônia, o moralismo católico, a censura, o ambiente iluminista londrino, Érico Borges é o protagonista. Fiscal da alfândega brasileiro, Borges é enviado a Londres nos anos de 1760. O seu objetivo é investigar, secretamente, uma rede de contrabando de livros eróticos, uma edição de Fanny Hill, romance que é amplamente considerado o primeiro exemplo de pornografia em prosa inglesa, e que vinha alimentando as chamas do ansioso puritanismo da nação desde que foi publicado na Inglaterra há mais de 200 anos.

O primeiro choque do personagem é sair da simplicidade brasileira, do pensamento marcado pela religião, e confrontar a vivacidade gigantesca de Londres, onde “todos os homens da Terra estão ligados um ao outro sem o saberem, fluindo como sangue pelas veias invisíveis das rotas de comércio, bombeando e fazendo pulsar a cidade que é o monstruoso coração do mundo”. Porém, como coração, Londres é ainda também o cérebro. Com as ligações culturais, Londres, bem como a França, impulsiona o Iluminismo e uma visão política contrastante com a do Brasil.

Antoine-Jean Duclos, 'Le bal paré', 1774
Antoine-Jean Duclos, ‘Le bal paré’, 1774

Nesse mundo completamente distinto do seu, Érico assume a identidade de Barão de Lavos e passa a observar as ações de figuras importantes, infiltrado no universo de futilidades dos salões, entre a diversidade dos livros e amizades de Fribble e Maria de Almeida. No período em que investiga, Érico também conhece Gonçalo, um jovem fascinado pela culinária, por quem se apaixona e vive uma relação amorosa central no enredo.

Quanto à trama política, Érico logo ganha um inimigo que é a face que torna o livro ainda mais fascinante. Como um bom historiador, Samir elege à figura de vilão um personagem com o nome de Conde de Bolsonaro. O livro foi publicado em 2016 e percebe-se como o autor identificou a obviedade do nosso destino com as eleições. A obviedade de um pensamento de extrema-direita mais uma vez prevalecer na história brasileira. O Conde de Bolsonaro incorpora o fanatismo religioso, as alianças escusas e o moralismo excessivo ao ter como missão destruir todos aqueles que têm comportamento que ele julga sodomita. Uma verdadeira figura vilanesca, tão canastrão quanto àqueles vilões de comédias e a versão real dos difíceis meses brasileiros.

O livro passeia por entre os conflitos de Érico ao se incomodar com as frivolidades da corte, ao mesmo tempo em que precisa pertencer a ela a fim de prosseguir com sua investigação, e a urgência de ser verdadeiro com o homem que ama. A relação homossexual, no livro, é bem construída: mesmo tendo a referência clássica dos gregos, a forma do romance é muito brasileira. Como o dia em que Érico leva goiabada para Gonçalo. Esses detalhes tornam os dois personagens de imensa importância, dado o fato de que por tanto tempo, incluindo a representação na literatura brasileira, foram amores sem visibilidade. Como se não existissem por séculos. Por isso, a relação de Érico e Gonçalo é a grande originalidade da obra, insuflando vida ao texto.

A Court Ball in the 18th Century
A Court Ball in the Eighteenth Century, ilustração para Comic Sketches From English History por Lieutenant-Colonel T. S. Seccombe (W.H. Allen, 1884)

Com efeito, Homens elegantes é um livro muito diverso em suas temáticas. Composto por um excelente trabalho de pesquisa histórica, há muitos momentos de crítica ao conservadorismo, levando o leitor a notar que muitas marcas do Brasil Colonial continuam presentes, na forma como pensamos, a interpretação do livro como um perigo, as relações amorosas. Sobretudo, permanece a associação do corpo à culpa advinda do catolicismo, com a eterna dificuldade de libertar o âmbito político dos dogmas religiosos, e do Brasil entender-se como Brasil.

Da parte do mundo europeu do século XVIII, Samir coloca no ponto principal da história o dandismo, aparecendo em duas formas: Érico Borges assumindo a persona que lhe convém na corte; e o dandismo extravagante de Fribble, com a multiplicidade de tecidos e brilhos de seu guarda-roupa enriquecido. É um encontro divertido entre as frivolidades da corte que Fribble veste numa nota maior, enquanto Érico descobre um estilo entre os dois universos, o sóbrio e o frívolo. Junto a eles tem a personagem Maria de Almeida, também afeita aos exageros da corte. Mas sua história tem um passado interessante conectado ao terramoto de Lisboa, e a sua posição na trama é de uma mulher informada com os panfletos de cunho feminista e a oposição dela em se casar.

Tudo brilha tal qual um Olimpo forjado em terras humanas. O salão fornece todo tipo de sonho em comida, em bebida, em trajes. Esse encanto de outro mundo é bem transmitido no decorrer de toda a obra, as descrições muito convincentes, a ponto de desejarmos os doces das mesas e as promessas desse falso Olimpo.

Marie-Antoinette scene
As descrições das festas da corte, no livro, coincidem com os banquetes do filme ‘Maria Antonieta’ (2005)

A literatura e a história do livro como códex também têm participação do enredo. Com a investigação de Érico, a narrativa traz elementos bem estudados sobre o estilo do mestre impressor, os esquemas para se vender e ler obras proibidas, o moralismo entrelaçado às páginas de um livro e, principalmente, o perigo explosivo das ideias. Há uma passagem muito interessante, onde o autor demonstra que a organização dos livros na estante também pode contar uma história diferente. Se rearranjarmos em uma estante algumas obras, elas ganham um elo comum capaz de inaugurar uma outra leitura possível: reunindo os gregos Platão, Homero, Heródoto e Virgílio, colocando Fedro com Satyricon, de Petrônio, e ainda Mercador de Veneza, de Shakespeare, essa poderia ser “a sequência de leituras de um sodomita”.

A força da juventude aparece em Homens elegantes como criadora, amante do mundo, desafiante das normas, encerrada no casal. O texto sublinha a passagem de Sátira X, de Juvenal, “Para o jovem, o mundo não é o bastante; ele se inquieta quando confinado pelos estreitos limites do globo”. É essa frase que bem define Érico e Gonçalo, mas marca o tom de toda a narrativa: é o fôlego apressado, curioso, potente de um jovem abarcando salões, livros, ideias, e exigindo protagonismo no teatro do mundo a fim de viver seus amores proibidos.

Assim, Samir Machado de Machado fornece, com muita originalidade, a Homens elegantes, um amplo quadro de um século. Trabalha bem com os estereótipos das estruturas de histórias já contadas em aventuras de Alexandre Dumas, filmes de ação, com a diferença de que há um protagonista gay modificando a estrutura do personagem masculino predominante. Há o humor das comédias francesas do século XVIII, e um humor reflexivo, de um narrador que percebe Brasil, Portugal e Londres com suas peculiaridades históricas. Homens elegantes torna os salões londrinos um palco para a ação da espionagem, e coloca no centro, para o espectador-leitor, a ironia bem desfiada que reconta as várias máscaras de um passado e de um presente muito brasileiros.

 

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