Palavras entaladas viram concretude quando escapam. Mas já seriam palavras antes de se tornarem corpóreas? Esse estado concreto da palavra aqui é apontado não apenas na sua forma escrita, mas também quando da fala. É que a externalização do sentir e do pensar representa aquilo que a palavra já é antes de ser dita ou escrita, de modo que a sua essência é a mesma independente da forma com a qual se manifesta no plano exterior. Seriam então as palavras antes de assim se tornarem? Há alguma distinção de fato sobre o que representam para além (ou aquém) de seu formato pré-dito (mentalizada ou sentida) e pós-dito (corpóreo)?
Há certa resistência presente em alguns para externalizar os pensamentos ou os sentimentos através das palavras. Isso ou ainda algum tipo de dificuldade – que se situa em um plano outro da resistência. São coisas distintas, mas cujo efeito acaba sendo o mesmo: impedir que algo saia, que a palavra se manifeste, que o pensar e o sentir ganhem vida num nível além. De todo modo, a palavra para a coisa (que já é, em certo nível, palavra[?]) existe, mas ela fica travada na garganta. A coisa em si, portanto, não muda naquilo que já é. Falta apenas nascer, por mais que já exista antes mesmo do parto.
O não falar não muda o fato de que aquilo a que a palavra (que não sai, pois travada) se refere já é antes de ser, como também não se muda que a palavra, na realidade, já está presente, seja na mente, seja na garganta ou ainda no coração, restando apenas ganhar corpo no plano externo mediante um sopro de vida.
Como saber quando a palavra já existe antes de ser? Essa dificuldade de reconhecer a presença da coisa previamente ao seu formato corpóreo, ou seja, antes do seu primeiro respiro, pode residir tanto naquele em que surge a coisa como em alguém que o circunda de algum modo. Para aquele a que pertence o não dito que já existe, as circunstâncias tendem a ser próprias, individuais, características do próprio ‘eu’ do indivíduo. Talvez o receio de como a coisa falada possa soar ou a cicatriz de um ferimento antigo decorrente de quando o algo foi dito sejam exemplos que explicariam a dificuldade ou resistência de quem permanece com a palavra apenas em seu interior. Se for dito, algo muda? Se falado, a interpretação de terceiros será adequada ao que se quis dizer? Se externalizado, toda a carga emocional que se situa no âmbito daquela palavra estará também presente quando mencionada – e será sentida por quem a ouvir? Essas e tantas outras indagações possíveis podem constituir a base para a aflição daqueles que, por qualquer motivo seja, negam-se a libertar aquela palavra que luta contra os grilhões do plano interno em que se situa enquanto anseia pela vida externa.
No caso de quem não está acometido pela palavra, mas é ou será afetado, de qualquer forma – direta ou indiretamente, por ela, a percepção acerca de sua existência-antes-de-ser pode surgir de maneira espontânea ou voluntária. Se algum traço indicativo de que há algo no outro que lhe diga respeito for captado, surge aí a possibilidade de se cogitar que esse algo seja uma palavra presa que clama por liberdade, mas que permanece submissa à vontade de seu portador. A depender do contexto, do grau de proximidade, do âmbito da relação, do afeto existente ou ainda de uma determinada situação, a palavra pode acabar sendo compreendida por esse a quem a palavra não pertence, mesmo quando ainda ausente no plano externo. É que a palavra presa pode ser sentida não apenas por aquele que a detém, mas também por um terceiro envolvido no âmbito desse dito não dito. Claro que o risco dessa compreensão ser apenas um palpite existe, mas há um elo situado numa ordem que foge à compreensão humana que faz com que o acerto se faça presente, pois isso se traduz numa forma de compreender que só é possível em alguns casos – ligando o portador da palavra presa ao terceiro que consegue ler e ouvir mesmo quando ainda não constituída em palavra externa.
A palavra sempre quer sair. Anseia a liberdade. Pretende se ver livre, conhecer o mundo. Ela, a palavra, não mede as consequências, pois sequer as conhece. Assim, quando imbuída de uma certeza de sua própria necessidade, quando carente de qualquer frivolidade, quando munida de um resguardo justificante que dá guarida ao seu portador para que a liberte, quando amparada em sentimentos que precisam ser externalizados, a palavra precisa ser dita.
A liberdade da palavra também acomete quem a solta, quem a diz, quem a fala, quem a torna palavra. A palavra já é antes de ser, restando apenas ser dita. Que se diga, portanto, pois também é possível se libertar ao libertar a palavra.
Sejam libertos os que libertam a palavra!
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