Sacrifício de Isaac, mosaico, século VI.
Já falamos aqui no Artrianon sobre os belíssimos mosaicos de Justiniano e Teodora na Basílica de San Vitale, em Ravenna, no norte da Itália. Hoje, gostaria de comentar a imagem do sacrifício de Isaac que se encontra na mesma igreja e tive, por fim, a oportunidade de ver pessoalmente no mês passado. Ambos são do mesmo período, possuindo características estilísticas semelhantes, tais como a frontalidade e a ausência de movimento dos personagens, o fundo dourado etéreo e atemporal que representa a luz divina e conseguido através de folhas de ouro colocadas entre pedaços de vidro, além de estarem muito próximos ao altar maior, porém, por razões diferentes.
O sacrifício de Isaac se localiza em uma luneta à direita do presbitério – perto do altar maior e à abside na qual figura o Cristo -, sob a figura do profeta Jeremia e uma paisagem que faz alusão a uma passagem sobre Moisés. É bastante comum que representações dos profetas estejam próximas ao altar, local onde se acredita que o pão e o vinho tornam-se o corpo e o sangue do Cristo durante a consagração das espécies, pois essa figuras do Antigo Testamento anunciam a vinda do Cristo e prefiguram os acontecimentos do Novo Testamento. Houve uma importante batalha teológica em Bizâncio/Constantinopla, capital do Império Bizantino ou Império Romano do Oriente, sobre qual seria a natureza do Cristo, humana, divina, ou ambas, tendo vencido a doutrina que defendia a dupla natureza do Cristo, e, dessa maneira, as representações dos profetas ou da Virgem Maria provam sua encarnação e seu nascimento – repetidos todas as vezes que as espécies são consagradas –, ou seja, sua natureza humana, enquanto que sua natureza divina figura em outras imagens, por exemplo, naquela da abside, na qual o Cristo está em majestade, sentado sobre o globo terrestre como o senhor do universo.
Na primeira parte do mosaico do sacrifício de Isaac, à esquerda, vemos Sara dentro de uma cabana e Abraão que oferece um cordeiro a três anjos sentados em uma mesa sobre a qual há três pedaços de pão. Essa cena se refere ao momento no qual anjos visitam Abrãao e lhe anunciam que ele e sua esposa, Sara, já idosos, terão um filho (Gênesis 18).
A narrativa continua à direita – sem separação das cenas, como é frequente nas imagens do período – e ilustra o sacrifício de Isaac, propriamente dito. A representação, apesar estática, mostra, através da pose de Abraão, a dramaticidade do momento no qual o patriarca está prestes a sacrificar seu único filho Isaac, mas é interrompido por Deus que representado através de uma mão que desce dos céus.
Na Bíblia (Gênesis 22), Deus pede a Abrãao que sacrifique seu único filho – aquele o qual o nascimento foi anunciado na cena anterior –, e ele, temente a Deus, obedece, levando seu Isaac – que não sabe de nada – para a colina indicada pelo Senhor, mas, exatamente na hora em que ele pega a faca e está pronto a cumprir o que lhe foi ordenado, a voz de um anjo o chama do céu e o impede de realizar o sacrifício, pois ele estava sendo somente testado. No lugar de Isaac, é sacrificado um cordeiro que estava preso pelos chifres em um arbusto à proximidade – que é figurado no mosaico puxando a túnica do patriarca com a boca. Por fim, também é dito que a descendência de Abrãao será numerosa, descendência esta entre a qual está o próprio Cristo.
Assim, o episódio do sacrifício de Isaac prefigura no Antigo Testamento o sacrifício do próprio Cristo – chamado de “o cordeiro de Deus” – no Novo Testamento; Cristo, que, lembremos, está representado em majestade, bastante próximo, na abside.
Dessa maneira, podemos perceber que as imagens eram muito mais do que meras decorações ou ilustrações. Os chamados programas iconográficos eram pensados por teólogos e importantes personalidades da Igreja, jamais sendo meramente inventados pelos artesãos que os realizavam, sendo assim repletos de significados e defendendo a ideologia de seus comanditários.
Os mosaicos de San Vitale, junto outros monumentos paleocristãos da cidade Ravenna, se tornaram Patrimônio Mundial da Humanidade, pela UNESCO, em 1996.
Bibliografia:
Jean-Claude CHEYNET, Histoire de Byzance, Paris, Presses Universitaires de France, 2005.
Jean LASSUS, O mundo da arte: Cristandade clássica e bizantina, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1979. Trad. Álvaro Cabal, Áurea Weissenberg, Donaldson Garschagen, Henrique Benevides, Lélia Contijo Soares, Sílvia Jambeiro e Vera N. Pedroso.
Tania VELMANS, L’image byzantine ou la transfiguration du réel, Paris, Hazan, 2009.
Links:
Livia Alberti, “Restoring the Mosaics of San Vitale” in The Global Dispatches, [Online]. Consultado em 02/09/2019.
http://www.theglobaldispatches.com/articles/restoring-the-mosaics-of-san-vitale
“Church of San Vitale” in Enciclopaedia Britannica, [Online]. Consultado em 02/09/2019.
https://www.britannica.com/place/Church-of-San-Vitale
“Early Christian Monuments of Ravena” in UNESCO, [Online]. Consultado em 02/09/2019.
https://whc.unesco.org/en/list/788/
“Gênesis 18” in Bible Gateway, [Online]. Consultado em 02/09/2019.
https://www.biblegateway.com/passage/?search=G%C3%AAnesis+18&version=ARC
“Gênesis 22” in Bible Gateway, [Online]. Consultado em 02/09/2019.
https://www.biblegateway.com/passage/?search=G%C3%AAnesis+22&version=ARC
Fontes das imagens:
Imagem da autora (Cristo em majestade).
Imagens de Petar Milošević (Sacrifício de Isaac) – Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=41450781
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