“A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento, uma santa afirmação”. A última transformação do espírito informada pelo Zaratustra de Nietzsche consiste na transformação do leão em criança. O camelo, primeiro estágio, antes da transformação em leão, carrega um peso e caminha pelo seu deserto – até não suportar mais essa carga. Assim, no deserto, o espírito torna-se em leão pois quer agora a sua liberdade, e luta contra seu inimigo. O leão alcança a liberdade, porém, ainda não tem o poder da invenção. Daí que o último estágio acontece a transmutação de leão em criança… “A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar…”
“O quarto de Jack” de Lenny Abrahamson é uma película que tem por base o romance homônimo escrito por Emma Donoghue no qual uma mulher é sequestrada e mantida em cárcere junto de seu filho por mais de cinco anos. O drama vivido pelos dois resta evidente nas cenas infantis e poéticas do longa, contudo, para além do quarto havia Jack. Iremos por essa senda. Um quarto pode ser como no filme, um cativeiro, bem como, pode ser o local em que guardamos as melhores lembranças da infância. Poderia ser o quarto onde escondemos as memórias que não contamos para ninguém. O local no qual nos permitimos, onde nos penitenciamos em silêncio? Uma dispensa de coisas que não são usadas. Mas é também um local como outro. Contudo, sempre, um local no mundo. Daí a necessidade de saltarmos da vivência real com que comumente olha-se o cativeiro de Jack – todo o peso do camelo – para uma construção da existência a partir da imaginação.
É evidente que o filme nos permite uma reflexão sobre o modus como o espaço nos constitui, no entanto, para além da paisagem que nos enreda, há um horizonte que é construído pela linguagem imagética – local mesmo de habitação da criança. Uma doutrina platônica do conhecimento conceberia o quarto como uma caverna. Jack teria acesso apenas às sombras contadas pela sua mãe. No entanto, a luz não é o único local de nascimento do saber. No coração pulsa imaginação. O quarto de Jack é o próprio planeta no qual aquela criança habita, pelo rosto da mãe ele habita o Kosmos. Assim, a partir de um olhar que acolhe, pode-se irromper para um mundo outrora desconhecido. À criança não importa a medida do infinito – só podem amar as crianças?
Num golpe de leão a mãe, Joy (Brie Larson), cria um plano que os absolve da pena de viver num quarto eternamente. A luz da liberdade ofusca o olhar de Jack (Jacob Tremblay), sua mãe, embaralhada entre o dentro e o fora, tenta explicar a Jack o que é real e o que é fantasia. O leão é o “eu quero”, mas não é o “eu crio”. Assim, Joy, aprisionada sem prisão, sofre com o peso que o camelo em sua primeira transformação havia já se desgarrado. Carrega para dentro de si o próprio quarto. Parece que o mal que aflige Joy estaria na impossibilidade de descarregar os móveis do velho quarto.
Jack vai comodamente especializando-se. O ser “especializa” e de alguma maneira, quando o médico diz que Jack saiu do quarto enquanto ainda era plástico, talvez nos estivesse a dizer que Jack, iria logo “profanar” seu próprio espaço, ora, pouco depois que sai do quarto o menino se reinventa, ou seja, como nos ensina Agamben, cria novas possibilidades para o seu velho quarto. Que agora poderia ser um quarto mesmo, ou uma velha lembrança que o permitiria construir novos mundos. Jack, então, realiza, in toto, a transformação sugerida por Nietzsche. Do leão que faz brotar a liberdade, da luz que em excesso ofusca, transmutou-se naquilo que sempre foi – um inventor de seu próprio tempo, e assim, como mais uma vez ensina Nietzsche: “torna-te o que tu és!”. A criança, e apenas ela, sem medo, sem pesos, sem memórias, resinificou sua própria existência. Brincar sempre fora a saída que Joy encontrou para que Jack não atrofiasse sua existência dentro do quarto, da mesma maneira, Jack reinventará o tempo da mãe: seja enviando uma mecha de seu cabelo para ela ficar forte ou fazendo com que ela deixe de ser leoa e se transforme em criança, libertando-a do ontem – esse quarto entulhado que insistimos em carregar porque somos adultos.