Uma obra grandiosa que fala sobre a humanidade e que soa incrivelmente renovada se a pensarmos nos últimos dias de anúncio de uma pandemia, com fechamentos de fronteiras e países tomando decisões emergenciais em razão do novo coronavírus. A escala mundial, de repente, se tornou pequena e possível de se sentir em poucos dias, em qualquer região. A escultura em bronze do artista Jean-Baptiste Carpeaux, As quatro partes do mundo sustentando a esfera celeste (Les quatre parties du monde soutenant la sphère céleste) de 1872, representa o trabalho da Europa, da América, da Ásia e da África em segurar, no alto, o globo terrestre.
Sobre Carpeaux, sabe-se que o artista foi filho de pedreiro e fabricante de rendas. Seu pai conseguiu matriculá-lo aos 10 anos na famosa Petite École de Paris, onde aprendeu desenho, arquitetura e lapidação. Em 1844, ele ganhou a entrada para a École des Beaux-Arts e passou a maior parte da década seguinte repetidamente tentando ganhar o Prix de Rome em escultura. Quando finalmente ganhou, pôde viver em Roma e se inspirar nos grandes nomes italianos. Carpeaux criou também as obras Ugolino e seus filhos e A Dança, um grande e animado grupo para a fachada da Opéra de Paris, e a qual foi recebida pelos críticos e público como um escândalo.
Exposta no saguão do Musée D’Orsay, trata-se de uma das principais esculturas que reside na simbologia do museu junto ao relógio. Vale observar, em primeiro lugar, que hoje consideramos como continentes a América, Europa, África, Ásia, Oceania e a Antártida. A escolha do artista se concentra em nomear apenas as regiões, possivelmente, a partir dos domínios entre impérios e reinos. É uma divisão com a perspectiva do século XIX.
Dito isso, podemos pensar sobre a estrutura da escultura. Para começar, a esfera celeste é toda vazada. A escolha de Carpeaux em representar o globo dessa forma é inteligente, pois aquilo que poderia parecer uma massa densa, o peso enorme que Atlas segura nas costas, é figurada com leveza, quase sem forma. O contraste entre o mármore dos corpos e o globo dão a impressão de que o peso reside mais entre os continentes do que na esfera.
É preciso notar que cada figura apresenta um movimento à cena. Elas não se encontram estáticas ao sustentar o globo, mas girando em aflição por dividir o peso e o movimento. A Europa tem os braços levantados, o cabelo esvoaçando e olha para o globo, o corpo todo reto. A Ásia, com suas tranças longas, olha preocupada, com o rosto voltado para a Europa. A África e a América estão lado a lado, uma com os cabelos longos olhando para o alto, e a outra com o cocar de penas, o corpo virado para o lado. O detalhe interessante está na figura da África: grilhões foram quebrados, e ela está livre da escravidão. Carpeaux fez bustos em vários materiais dessas personagens, e a figura da África deu origem a um busto que Carpeaux exibiu com a inscrição “Por que nascer escravo?”.
Considerando que o século XIX é um período tomado pelo orientalismo e visões reducionistas sobre nacionalidades além da europeia denominadas como o “outro”, o trabalho de Carpeaux é admirável, nesse contexto, por preservar os traços de cada figura e marcas das culturas. É verdade que os corpos seguem os padrões europeus da beleza feminina, que retorna constantemente à Vênus. Ainda assim, o artista não escolheu em representar as quatro partes do mundo por figuras femininas de mesma face, alterando só os gestos. São figuras com características e emoções próprias, tornando o conjunto da escultura uma reunião de nacionalidades além das fronteiras europeias, as quais tinham perspectivas hegemônicas no século.
Além dessa obra, há outra versão feita por Carpeaux, no Jardim de Marco Polo, na Fontaine de l’Observatoire, em Paris. O barão Haussmann, o prefeito de Paris responsável pelas alterações que delinearam o aspecto que conhecemos hoje da cidade, encarregou Carpeaux de projetar a fonte em 1867. O escultor escolheu o tema que combinou com o do Observatório e a figura de Marco Polo, mercador veneziano que viajou para a Ásia, com todo o ideário europeu de “descoberta” de outras culturas.
Foi Emmanuel Frémiet quem continuou o trabalho da escultura na fonte após a morte de Carpeaux em 1875, fabricando os oito cavalos, os golfinhos e as tartarugas da bacia. Louis Vuillemot fez as guirlandas em torno do pedestal. E Pierre Legrain esculpiu o globo com os signos do zodíaco.
O trabalho todo de Carpeaux é uma composição majestosa da delicadeza no bronze e na pedra. O pathos da cena, a emoção, é a escolha central do artista em contar uma história pela escultura e cativar. Isso aparecia no seu gosto pelo movimento das vestes, dos gestos e olhares, algo mais expansivo e apaixonado do que o ar contido do neoclassicismo e as referências gregas. A escolha do globo terrestre também retoma a cosmogonia grega, de Parmênides e Platão, pois nessa tradição havia o mundo terrestre e o Outro-Mundo. Passando para esse segundo, pela morte, leva ao círculo desejável.
O universo, em Timeu de Platão, estaria na forma da esfera: “Quanto à forma, Ele (o Criador), deu-lhe (ao Universo) a mais conveniente e natural. Ora, a forma mais conveniente ao animal que deveria conter em si mesmo todos os seres vivos, só poderia ser a que abrangesse todas as formas existentes. Por isso, ele torneou o mundo em forma de esfera, por estarem todas as suas extremidades a igual distância do centro, a mais perfeita das formas e mais semelhante a si mesmo, por acreditar que o semelhante é mil vezes mais belo do que o não-semelhante” (PLAO, 2, 488).
Seguindo esse trecho de Platão, a proposta da obra de Carpeaux propõe o equilíbrio pela esfera porque as quatro partes do mundo podem ser vistas como a principal conforme fizermos o círculo, o movimento da esfera em torno da escultura. Nós mesmos passamos a ser uma parte do movimento de sustentação. Estando o globo segurado pelas duas mãos de cada figura, evita-se representar o globo como objeto detido em apenas uma das mãos, como dominância de território. O poder está nas quatro figuras, de modo que esteja submetido à preservação do todo. E, sendo o círculo essa perfeição que dá ao semelhante a beleza, não há distinção entre as partes. São todas em igual equilíbrio responsáveis pela manutenção da esfera celeste.
Nada diferente da situação vivida no século XXI, em que a possibilidade de viver uma pandemia em escala global e dar visibilidade a mais histórias e vivências das pessoas em torno do mundo ao mesmo tempo, reúne, em certa medida, esse belo do semelhante e a perfeição da totalidade. E, ainda, demonstra que a sustentação de algo tão grandioso como a Terra e a vida ainda reside numa responsabilidade social pelo coletivo.
Referências bibliográficas
CHEVALIER, J. Dicionário de símbolos. Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, com a colaboração de: André Barbault. coordenação Carlos Sussekind; tradução Vera da Costa e Silva. 26a edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
Tortured Soul, Golden Touch – The New York Times
Créditos das imagens: Louise Going out, Wikipédia
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