Este texto é o trabalho final para a cadeira de Literatura Portuguesa 3, ministrada na UFRGS em 2019-2. Tem como objetivo analisar o romance Bolor, de Augusto Abelaira, principalmente no que tange à posição do narrador, que parece buscar uma experiência/subjetividade em tempos de modernização acelerada em escala mundial, que se pauta pela repetição, representação, reificação da vida ao invés de uma experiência histórica. Será uma análise breve com muita atenção ao texto e uma ou outra interpretação com o auxílio de Maria Luiza Remédios e Theodor Adorno. Ao final, apresentarei uma hipótese de comparação com o filme O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais, contemporâneo ao livro e que julgo ter semelhanças interessantes.
Lembro-me, vejo-me como se estivesse fora de mim próprio e de fora de mi próprio pudesse observar-me (…)
(Augusto Abelaira, Bolor)
Logo na primeira frase do romance podemos mapear alguns aspectos formais que estruturam a forma: se trata de um narrador em 1ª pessoa algo memorialístico que escreve um diário. Já aqui haveria várias perguntas a fazer: por que um diário? A quem escreve? Por que escreve? Diz o narrador:
“Olho para o papel branco (afinal um tudo-nada pardacento) sem a angústia de que falava Gauguin (ou era Van Gogh?) ao ver-se em frente da tela, mas com apreensão, apesar de tudo. Que vou eu escrever – eu, a quem nada neste mundo obriga a escrever? Eu, antecipadamente sabedor da inutilidade das linhas que neste momento ainda não redigi, dentro de alguns minutos (de alguns anos) finalmente redigidas?” (ABELAIRA, 1968, p. 9)
A superposição de tempos é algo intrigante: o presente da enunciação é o momento da escrita? Ao que parece sim, inclusive com marcas “diegéticas” do tempo em que escreve, quando sinaliza que não lembra exatamente de quem é a frase, se de Gauguin ou de Van Gogh. Ele se pergunta o que vai escrever, mas diz que sabe que é inútil o que escreverá… Já no primeiro parágrafo sabemos que não é um narrador em que se possa confiar. A metalinguagem já escancara o jogo de ficção que será construído ao longo do livro e que também nos indica claramente que se trata de uma obra de arte. Podemos perguntar então: quem é este narrador? Só nesta parte há três perguntas, e a pergunta, como sabemos, é uma forma de convocar o outro, o interlocutor, a fazer parte do diálogo.[1] Quem é seu interlocutor? Um diário é basicamente uma forma auto-reflexiva, logo, é um interlocutor que fala consigo mesmo. Voltando às perguntas, aqui estamos no terreno por exemplo de Shakespeare, em que as dúvidas, os questionamentos constroem a individualidade/subjetividade incipiente para o sujeito moderno e que tem em Hamlet um protótipo. Tentarei mostrar que essa posição que poderíamos chamar de estranhamento é constante e estruturante no romance e que talvez diga da busca da experiência em tempos de crise da subjetividade.
Por ora tínhamos só o narrador, que descobrimos depois se chamar Humberto. Mais adiante entra mais uma personagem em cena, a Maria dos Remédios, sua companheira. O narrador segue nessa posição de estranhamento em relação a tudo e a todos:
“Procurava eu ignorar tudo quanto sabia acerca da minha mulher para melhor a descobrir através dos brincos quando ela me disse:
–– Porque casaste?
(…) observo-lhe com mais atenção os brincos, constituídos por duas argolas geminadas – e como não são de oiro tu não és rica (…) “(ABELAIRA, 1968, p. 21)
Qual é o sentido de o narrador dizer que buscava ignorar o que sabia sobre sua companheira para tentar “descobri-la” através de seus brincos? É uma zona cinzenta na qual, penso eu, estão em jogo das subjetividades. É como se o narrador se propusesse perguntas e, ao tentar respondê-las, recuperasse uma memória ou um conhecimento já perdido hoje no tempo em que escreve. Essa voz se coloca fora de si como para ter uma visão panorâmica da vida e suas relações para tentar compreender o que se passa, para tentar reconhecer a vida e a experiência que ali estão. Maria dos Remédios pergunta a Humberto por que ele se casou. Mas isso não é óbvio para um casal? Aqui já vemos indícios do que saberemos mais adiante que o enredo do romance é a crise de um casamento, mas proponho que abaixo dessa superfície haja uma estrutura que diz respeito à posição do narrador e que corresponde a uma busca pela vida real. Estariam eles fingindo o relacionamento?
Humberto em princípio é a única voz no romance, um narrador tipicamente implicado. Em determinado momento, questiona sua posição como narrador, novamente se valendo da metalinguagem (que como disse escancara a ficção para o leitor): “Em resumo: fui absolutamente exacto, um narrador exemplar do que se passou?” (ABELAIRA, 1968, p. 29). Há um movimento interessante quanto ao papel ativo do narrador, quando este se diferencia do descritor segundo Lukács (1965), que vê no narrador alguém implicado na ação. Por que questiona sua posição? Claramente significa que duvida de seus próprios pressupostos, e estes tem a ver com sua experiência de vida que ele a princípio está relatando. Aqui cabem dois elementos importantes que já estavam visíveis antes e que seguirão ao longo do texto: a) há muitas menções ao eu (utilizando o pronome ou não), o texto é muito centrado no eu, o que nos remete a Benveniste (1988) quando diz que é na linguagem que a pessoa se faz sujeito, o que nos levaria a interpretar essa abundância de eu por aí como uma tentativa extrema do locutor de se (re)encontrar com sua subjetividade; b) novamente as perguntas, questões, que explicitam suas dúvidas perante sua vida e sobre suas relações.
Essa tensão entre experiência e reificação, esta entendia como uma vida padronizada, rotineira e repetitiva, ou como mera representação de papéis em que se sabe que não é a vida real, é uma das chaves de leitura importante para o romance. Vemos um exemplo disso no dia 1 de janeiro, quando o narrador escreve: “Hoje que um novo ano começa” (ABELAIRA, 1968, p. 37). No próximo dia, a data se repete (é novamente 1 de janeiro), mas com uma novidade importante: é a Maria dos Remédios a narradora deste trecho (ao menos ela assina ao final do dia). Aqui já temos um elemento de polifonia, entendido conforme Bakhtin, de grande valia para a análise, que esboçarei depois me apoiando no trabalho de Maria Luiza Remédios. Maria dos Remédios (a personagem) questiona se Humberto esconde algo. Pela repetição da ação, tenta encontrar uma razão para um questionamento que é de ordem subjetiva, portanto humana. Seria uma contradição que pela repetição se encontrasse uma resposta de ordem humana? A queixa à repetição dos fatos reaparece, agora novamente na boca do narrador, que diz:
“Percebi: o meu pequeno mundo ficava vazio e dependia de mim nesses dias mais próximos decidir em que espécie de outro homem deveria eu transformar-me para que os anos seguintes não fossem a simples continuação dos anos anteriores.” (ABELAIRA, 1968, p. 41)
A repetição sistemática de rotina que tem a ver com esvaziamento do ser humano na contemporaneidade é o alvo, cujo desejo no fundo é encontrar um resquício de vida no meio da mesmice.
A crise do casamento, que é a superfície do enredo, volta de quando em quando, mas creio que como pretexto, justificando esta estrutura de estranhamento, formalizado pela posição do narrador, que para mim é um dos princípios estruturantes do romance.
“Se falo aqui da Maria dos Remédios e da minha vida com ela é porque algo em nós ficou incompleto, é porque não achamos em nós esse absoluto, essa perfeição que a si mesma se basta. Se escrevo, pois, sobre ela é porque preciso não sei de quê, é porque” (ABELAIRA, 1968, p. 47)
Trecho elucidativo: traz o tema de superfície do livro; é formalmente interessante, porque suspende inclusive o ponto final, num indicativo de: a) fluxo de consciência, por não saber o que passa – por muitas razões psicanalíticas certamente; b) por indicar a falta, o vazio, que caracteriza essa subjetividade moderna, em busca de algo, de uma experiência. O centro gravitacional do romance parece ser esse estranhamento, como disse, mas que se materializa também na forma da representação, também conforme indicado anteriormente. Essa representação se assemelha à atuação de papéis, como no teatro, quando temos a total certeza de se tratar de ficção, portanto, algo entre a verdade e a mentira. Quando novamente a personagem Maria dos Remédios toma a palavra, diz: “Escrevo propositadamente diante de ti (enquanto relês o Patterns of Culture) no caderno que sabes teu – e sem que me perguntes nada.” (ABELAIRA, 1968, p. 63). Pura representação, nos lembra de teatro mesmo, e isso não é à toa, pois à frente o narrador diz: “E represento um papel, um papel bem mais rico do que o meu, bem mais dramático.” (ABELAIRA, 1968, p. 129). A experiência é antípoda da representação, que é algo premeditado, calculado, e é disse que o narrador busca se afastar. O jogo de máscaras, que nos remete imediatamente a Persona, de Ingmar Bergman, volta em outros momentos, talvez não com tanta força quanto neste trecho: “Eu, o Humberto, depois de por meia hora me mascarar de Maria dos Remédios e de inventar datas falsas, amo-te profundamente, profundamente até o mais íntimo dos meus desejos?” (ABELAIRA, 1968, p. 121). Como não podemos confiar no narrador, ficamos sem chão ao ler um excerto assim. Foi o narrador que simulou a escrita de sua companheira? Um movimento de projeção de subjetividade, assim pensando que conseguiria entender alguma coisa de modo mais acurado? É pura ironia desse narrador? Adiante o narrador volta a dizer coisas parecidas: “Ao menos por instantes, Maria dos Remédios, posso deixar de ser transparente a teus olhos, basta dizer-te que escrevo muitas vezes em teu nome (e no do Aleixo).” (ABELAIRA, 1968, p. 157). Então o narrador escreve também em nome do Aleixo (amigo do casal e amante da Maria)? Ao fim e ao cabo o que vemos é uma polifonia – aqui são três vozes ao menos, que mesmo que fossem escritas por uma só inteligência, os pontos de vista são distintos, como que enriquecendo as experiências possíveis para fornecer ao narrador uma base subjetiva em que possa se agarrar.
Aqui não se trata de um romance memorialístico, embora a memória esteja presente e seja importante para o desenvolvimento da narrativa, porque ela significa uma volta a uma experiência decantada. São vários os momentos em que esse narrador faz digressões. No entanto, como é inconfiável, é preciso manter uma distancia e pensar que aquilo pode ser imaginação, desejo, não memória. “Não sei como isso foi, mas às duas por três falávamos de viagens, nós que nunca havíamos viajado.” (ABELAIRA, 1968, p. 73) ou “Lembro-me de uma antiga conversa que nunca hegamos a ter…” (ABELAIRA, 1968, p. 176). Se nunca chegaram a ter como é memória? É uma estrutura opaca de linguagem cuja finalidade parece ser essa mesmo: uma busca pela experiência em tempos de capitalismo avançado, de ditaduras, não é algo fácil.
Comentando Joyce, Adorno basicamente diz que sua forma de vanguarda não tem a ver com uma “excêntrica arbitrariedade individualista”. Diz, antes, sobre a conjuntura histórica na qual está assentada aquela forma. “O que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite.”. Mais adiante, corrobora: “Pois contar algo significa ter algo especial a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela mesmice.” (2012, p. 56). Formou-se o quadro da modernidade para Adorno, que fala isso em 1954, pouco mais de uma década antes do lançamento de Bolor (1968). Se notarmos bem, o procedimento executado no romance em questão vai de encontro ao que o crítico identifica em outros romancistas da época, como Joyce, Proust, Kafka, num sintoma de época interessante de analisar. A saída para encontrar a experiência história decantada, síntese de Adorno para a obra de arte, em Bolor se dá justamente pela posição do narrador, que como vimos age com estranhamento às coisas do mundo (‘coisas’ não é aleatório, já que a reificação é para tudo e todos). Somente através dessa posição é que se consegue buscar a emancipação, através da memória, através do fluxo de consciência, do próprio estranhamento. A cisão do indivíduo, que vimos se passar com Humberto, e sua relação também de cisão com sua companheira e os outros personagens do romance, parece se relacionar com o que Adorno chama a atenção: “O momento antirrealista do romance moderno, sua dimensão metafísica, amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade em que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos.” (2012, p. 58, grifos meus). É preciso dizer, contudo, que não penso Bolor como um romance metafísico, embora seja claramente anti-realista em sua forma usual do século 19. Abelaira, assim, está em consonância com os romancistas de seu tempo, enfrentando as dificuldades de por em forma um movimento histórico rápido e profundo de modernização capitalista.
Para terminar a parte mais substantiva deste texto e passar para um brevíssimo comentário do filme de Resnais, Maria Luiza Ritzel Remédios em “Por uma tipologia da narrativa portuguesa” traz um elemento de grande interesse para a análise do romance. No capítulo citado, a autora traça um arco do romance Gaibéus, situado nos anos 1940, cujo narrador é aquele clássico de 3ª pessoa onisciente, marcado pela objetividade, até os anos 1970, quando há, segundo ela, a passagem para a subjetividade, marca dos narradores em 1ª pessoa (1986, p. 228). A crítica identifica em Bolor um caso significativo para a comparação, quando aponta seu carácter dialógico no sentido bakhtiniano, ou seja, polifônico, quando há várias vozes com vários pontos de vista compondo o romance. Num pensamento dialético, Maria Luiza Remédios indica que o fundamento histórico para essa mudança é a ditadura salazarista, que durante seu auge bloqueia na forma estética o surgimento de várias vozes, que significam várias visões de mundo: temos então o romance de Redol, Gaibéus, no qual o narrador onisciente não dá espaço para que ninguém fale. Já em Bolor, como vimos, há pelo menos quatro vozes ali (Humberto, Maria dos Remédios, Aleixo e Catarina, que entra ao final). Essa polifonia, diz a autora, se deve ao fim da ditadura militar salazarista, tornando possível a pluralidade de opiniões. Do movimento monológico ao dialógico, aponto que há, no último, também o significado da busca pela experiência, facilitado pela multiplicidade de visões.
* * *
No filme O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais, de 1961, creio que temos um procedimento de construção narrativa próximo ao abordado aqui. Descontados, claro, a diferença de forma artística (um é romance e o outro é filme, cada um com suas especificidades), vejo nos dois um movimento de estranhamento ao mundo exterior e um comentário crítico sobre a reificação e embotamento da subjetividade. Em O ano passado… ficamos em dúvida quanto à subjetividade daquelas figuras: serão coisas ou pessoas? Por vezes fotografadas de forma estática, lembrando as estátuas do lindo cenário, leva a crer na dissolução do indivíduo. Ali também há um movimento contínuo de repetição das cenas, imitação dos movimentos, sugerindo uma fragmentação do eu narrador (porque há um narrador, o que torna as discussões mais interessantes). Podemos dizer que há dois narradores no filme, um que fala em off, e o outro que seria a câmera. O que é interessante é que ambos parecem descolados: a voz diz uma coisa e a câmera mostra outra. Em verdade, se complementam só nos momentos em que há repetição de falas e de imagens, que vão se reiterando até o final do filme. Sugiro, então, que há ali uma fragmentação da experiência humana, tal como em Bolor, e cuja fissura é sugerida pelo descolamento dos dois narradores que postulo, câmera e voz em off. O descolamento do narrador seria um ponto estrutural comum entre o filme e o romance, que a mim parecem semelhantes por comentarem a posição do sujeito em tempos modernos. Cabe desenvolver o raciocínio para ver se tem cabimento tal comparação.
Referências
ABELAIRA, Augusto. Bolor. Portugal: Livraria Bertrand, 1968.
ADORNO, Theodor W. “Posição do narrador no romance contemporâneo”, in ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Ed. 34, Duas Cidades, 2012. [2 ed]
BENVENISTE, Émile. “A subjetividade na linguagem”. In: Problemas de linguística geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luiz Neri. Campinas: Pontes, 1988.
LUKÁCS, Georg. “Narrar ou descrever?”, in LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Tradução de Giseh Viana Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
REMÉDIOS, Maria Luiza R. “Por uma tipologia da narrativa portuguesa”. In: O romance português contemporâneo. Santa Maria: Edições UFSM, 1986.
RESNAIS, Alain. O ano passado em Marienbad. In. Nouvelle Vague. DVD Versátil. 1961.
*
[1] Ver BENVENISTE, Émile. “O aparelho formal da enunciação”. In: Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989. (Tradução de Marco Antônio Escobar). e JAKOBSON, Roman. “Linguística e poética”. In: Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2010. [22 ed].
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