Os Loucos Viajantes: O que os loucos podem nos ensinar sobre a história

A loucura fascina!

Seja na mesa de bar, seja na tela do cinema, pouco se fala da poesia de Sylvia Plath sem mencionar seu tempo no hospital psiquiátrico. A história da obra de van Gogh sempre recebe uma pitada a mais de emoção quando mencionado o episódio em que o artista corta a própria orelha num acesso de loucura.

Contudo, a trajetória destas pessoas e as razões que os levaram a ser chamados de “loucos” em algum momento de suas vidas, além de fascinar, pode também nos dizer muito sobre a cultura do tempo e lugar em que viveram. E é exatamente por esta razão que a trajetória dos loucos tem interessado cada vez mais aos historiadores.

Nas últimas décadas, pesquisadores da história, psiquiatria, antropologia e das mais diversas áreas do saber tem mostrado que a loucura não se trata de uma questão de ordem inteiramente médica. Conforme demonstram, além dos fatores biológicos, muitas das atitudes que levam alguém a ser ou não chamado de “louco” envolvem reflexões sobre a barreira entre o que é “normal” e o que é “anormal”. Contudo, os critérios que definem a norma possuem um forte diálogo com princípios e valores estabelecidos socialmente e que podem variar de acordo com a sociedade e o momento histórico.

Isso não significa que a loucura não exista e muito menos que não há influências biológicas nela. O “sofrimento psíquico” e/ou a “confusão mental” existem. E quem sofre sabe muito bem a dor e  estigma que isso pode causar.

O que quero dizer é que, a identificação de certos comportamentos como sintomas, bem como seu enquadramento e classificação como parte de uma “doença” ou “transtorno” específicos, muitas vezes possuem uma íntima relação com questões socioculturais, políticas, econômicas, religiosas (…) da sociedade que a identifica.  O mesmo se dá em relação às maneiras de se tratar essa “doença” ou “transtorno”.

A melancolia, por exemplo, um dia foi considerada um estado de humor comum e até compreendida como uma característica associada à reflexão intelectual e produção artística dos gênios. Uma compreensão muito diferente do que hoje chamamos “depressão” que é entendida como uma doença cujos sintomas são considerados incompatíveis com as transformações rápidas e dinâmicas do capitalismo e que deve ser combatida a todo custo.

Para situar melhor as maneiras pelas quais a cultura pode influenciar naquilo que é considerado loucura ou não, cito o exemplo mencionado pelo filósofo da ciência Ian Hacking em seu estudo acerca dos “loucos viajantes” que causaram certo fascínio na França durante a segunda metade do século XIX.

O objetivo de Hacking com o estudo foi definir o que ele chama de “doença mental transitória”, ou seja, doenças que aparecem em alguma sociedade situada num tempo e lugar específicos e, pouco depois, podem desaparecer ou reaparecer em outro lugar com condições culturais similares.

Os loucos viajantes eram sujeitos que, de repente, decidiam deixar suas casas, suas famílias e trabalhos para cair na estrada. Após percorrer longas distâncias e viver grandes aventuras, voltavam para a casa por um tempo, até decidirem abandonar tudo novamente e recomeçar suas viagens pelo mundo.

Esta prática só passou a ser compreendida como uma patologia em 1887 quando foi analisada e descrita como tal pelo psiquiatra francês Philippe Tissié. No momento em que este comportamento específico foi enquadrado como doença (ou sintomas de uma), recebeu também uma classificação médica, “automatismo ambulatório” e tornou-se assim, oficialmente, um objeto da medicina, suscitando uma série de debates na comunidade científica sobre como encontrar a origem desta doença ou como tratá-la.

Sendo descrita por alguns grupos como uma doença derivada da histeria e por outros como um subtipo de epilepsia, a loucura dos viajantes não apenas gerou uma intensa produção científica, como também se tornou um assunto que despertava fascínio na sociedade. Um fascínio que apresentava um misto entre temor e receio do comportamento destes sujeitos vistos como “vagabundos” e uma enorme e romântica atração por viagens e histórias de viajantes.

Ora, falamos aqui da França nas últimas décadas do século XIX, período em que Monet pintara sua série sobre estação ferroviária Saint-Lazare (1877) e que novelas literárias sobre viagens pelo mundo como as de Mark Twain e Jules Verne despertavam cada vez mais o encanto da classe média. O que nos leva a perceber porque a atitude de deixar tudo para trás a qualquer momento e cair no mundo atraiu tanto interesse, seja da comunidade científica, seja da sociedade civil do período.

Claude Monet. Gare Saint-Lazare, óleo sobre tela, 74,9 x 100,3 cm, 1877. Museu d’Orsay, Paris.

Para Ian Hacking, há também uma explicação para o fato de esta patologização dos viajantes ter se dado na França e não em outros países como Inglaterra ou Estados Unidos que, de certa forma, possuíam condições locais similares. Uma das razões, descreve Hacking, se situa numa esfera militar, já que o recrutamento obrigatório de soldados na França teria levado um conjunto de médicos forenses a investigar de maneira sistemática os viajantes em busca de desertores, levando o caso aos poucos para a esfera médica. Considerando que Inglaterra e Estados Unidos não mantinham um controle tão rigoroso sobre seus soldados, se comparado à França, não havia uma preocupação tão grande em relação a estas pessoas. Outra razão, de acordo com o filósofo, seria o fato de que os “vagabundos” não eram uma preocupação social tão grande para os países de cultura anglo-saxã onde muitos eram incentivados a se ausentar por razões como a exploração e a busca por novos territórios e colônias.

De qualquer modo, o que vemos aqui é a maneira como fatores socioculturais de determinado tempo e lugar acabam influenciando no que é considerado “louco” ou “normal”.

Um outro exemplo que, de certa forma também dialoga com a ideia do espírito aventureiro, pode ser identificado em meados do século XX nos Estados Unidos no que diz respeito aos beatnicks.

A “geração beat” foi um movimento contracultural formado por escritores e poetas norte-americanos que, principalmente durante as décadas de 1960 e 1970, se rebelaram contra o conservadorismo e a monotonia do american way of life, caindo na estrada e escrevendo sobre suas experiências boêmias com drogas e sexo livre ao som de muito jazz. Contudo, quando pensamos neste grupo, os primeiros nomes que nos vem à mente são os de Jack Kerouac, Allen Ginzberg ou até mesmo do músico Bob Dylan que afirmou ter sido profundamente influenciado pelos beats. Mas, onde estavam as mulheres neste momento? Não havia nenhuma entre eles? A melhor resposta a estas perguntas encontra-se na citação do poeta Gegory Corso, segundo o qual:

“Houve mulheres, estiveram lá, eu as conheci, suas famílias as internaram, elas receberam choques elétricos. Nos anos de 1950, se você era homem, podia ser um rebelde, mas se fosse mulher, sua família mandava trancá-la. Houve casos, eu as conheci, algum dia alguém escreverá a respeito.”

Os choques elétricos referem-se à Terapia Eletroconvulsiva (ECT), uma das grandes promessas da psiquiatria da primeira metade do século XX que, em muitos casos, acabou se tornando um instrumento de punição dentro dos hospitais psiquiátricos. E era exatamente para lá que muitas mulheres dos anos 50 e 60 eram enviadas caso escolhessem um estilo de vida que ia além do desejado pela sociedade norte-americana (entre outras sociedades) de esposa dócil, mãe amorosa e dona de casa sempre disposta a servir o marido. O espírito livre e contestador da geração beat, foi celebrado de maneira romântica quando se tratavam de homens, mas não era aceitável que as mulheres se rebelassem desta maneira. Aquelas que o faziam, muitas vezes foram consideradas loucas e acabaram numa instituição psiquiátrica.

Um dos casos mais emblemáticos é o da poetisa Elise Cowen (1933-1962) que esteve entre os beatnicks, mas ainda é pouco mencionada quando se fala sobre o movimento. Sua bissexualidade e tentativas de suicídio levaram seus pais a questionarem sua sanidade, buscando tratamento médico para a filha e a internando em algumas instituições psiquiátricas. Aos 28 anos de idade, a poetisa suicidou-se, jogando-se da janela do apartamento de seus pais, no sétimo andar. Grande parte de seus trabalhos foram queimados pouco após sua morte por seus pais e vizinhos, restando apenas um caderno que há alguns anos foi editado e publicado pelo crítico e poeta Tony Trigilio no livro Elise Cowen: Poems and Fragments (2014).

O caso de Elise como o de muitas outras mulheres de meados do século XX que se dedicaram à arte ou à rebeldia nos diz muito sobre como questões de gênero também podem impactar na fronteira do que pode ser considerado “louco” ou “são”.

Mas afinal, para que é importante compreender a historicidade da loucura? A resposta é simples. Muitos psiquiatras, como o espanhol Rafael Huertas, defendem que conhecer a historicidade do que chamamos de “doença mental” serve como uma ferramenta na prática clínica de modo a auxiliar na compreensão do peso que o meio cultural incide sobre o sofrimento psíquico de cada paciente. Para além da prática clínica, como foi possível perceber, compreender as dimensões históricas da loucura (ou do que foi chamado “loucura”) torna possível refletir sobre como valores específicos infuenciaram na construção e na transformação do que consideramos normal e do que consideramos patológico.

 

Referências Bibliográficas

COWEN, Elise N.; TRIGILIO, Tony (org.). Elise Cowen: Poems and Fragments. Boise: Ahsahta Press, 2014.

FACCHINETTI Cristiana; VENANCIO, Ana T.A. Da Psiquiatria e de suas instituições: um balanço historiográfico. In: TEIXEIRA, L. A; PIMENTA, T. S; HOCHMAN, G. (orgs.). História da Saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018.
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FOUCAULT, Michel. A História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.
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HACKING, Ian. Mad Traveleres: reflections on the reality of transient mental illnesses. Harvard University Press, 2002.
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HUERTAS, Rafael. Historia Cultural de la Psiquiatría: (Re)Pensar la Locura. Madrid: Catarata, 2012.
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HUERTAS, Rafael. Historia de la Psiquiatría, ¿Por qué?, ¿Para qué? Tradiciones historiográficas y nuevas tendencias. Rev. Frênia. Madri, v. 1, n. 1, 2001. p. 9-36. Disponível em https://digital.csic.es/bitstream/10261/17176/1/009-historia-de-la-psiquiatria-por-que-para-que.pdf.

PORTER, Roy. Uma História social da loucura. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

SCULL, Andrew. Madness in Civilization: A cultural history of insanity, from the Bible to Freud, from the Madhouse to Modern Medicine. Princeton: Princeton University Press, 2015. E-book. ISBN 978-0-691-16615-5.
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SIQUEIRA, Emanuele. Meu nome em cada página, em cada palavra uma mentira: O caderno sobrevivente de Elise Cowen pela crítica literária feminista. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2019. Disponível em https://www.acervodigital.ufpr.br/handle/1884/64365.

WADI, Yonissa. Entre muros: Os loucos contam o hospício.  Rev. Topoi. Rio de Janeiro, v.12, n. 22, p. 250-269. 2011. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2011000100250.

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