OBRA DE ARTE DA SEMANA: O Autorretrato de Caravaggio em ‘Davi com a cabeça de Golias’


Michelangelo Merisi, dito Caravaggio, Davi com a cabeça de Golias, óleo sobre tela, 125 x 101 cm, provavelmente realizada em 1609-1610. Conservada na Galleria Borghese, Roma, Itália.

As telas de Caravaggio são facilmente reconhecíveis pela dramaticidade da iluminação e o uso aperfeiçoado da técnica do chiaroscuro, criando contrastes intensos entre as áreas claras e escuras da pintura, prática que influenciaria direta ou indiretamente toda uma geração de artistas por toda a Europa.

Nessa obra, de datação controversa, criada no final da vida do artista – que morreu misteriosamente em 1610, aos 38 anos, tendo sido ele mesmo exilado de Roma por causa de uma acusação de homicídio -, vemos a figura do Antigo Testamento Davi, que depois se tornaria rei de Judá e Israel, representado sob os traços de um jovem – provavelmente com inspiração de modelos antigos, por exemplo, a túnica remete às estátuas de Antínoo, amante do imperador romano Adriano – que carrega a cabeça do gigante Golias – um filisteu que aterrorizava os judeus – que ele decapitou e apresentará ao rei Saul. No século XVII, as imagens de Davi se preparando para a luta, popular na Renascença, como na famosa estátua de Michelangelo, por exemplo, é substituída por criações que mostram o momento após a batalha, ostentando a cabeça do inimigo cortada.

Em sua espada, temos as letras HA O OS, que fazem alusão a frase augustiniana em latimhumilitas occidit superbiam”, ou seja, “a humildade assassina a soberba”, relacionada à vitória do Cristo sobre Satã. É possível perceber que ao invés do ar vitorioso de muitas representações, aqui Davi parece olhar para seu inimigo morto com um ar de piedade, tal como Cristo mirando os pecadores.

Além das características barrocas da obra, que conferem a justa dramaticidade ao episódio bíblico, é interessante destacar a curiosa possibilidade de que a cabeça de Golias – com as veias e tendões representados de maneira realista, sendo o realismo e a predileção por temas mórbidos também características do artista – seja um autorretrato, condizendo com aspectos físicos do artista descritos por seus contemporâneos e seus retratos.


Ottavio Leoni, Retrato de Caravaggio, carvão e pastel sobre papel azul, 1621. Conservado na Biblioteca Marucelliana, Florença, Itália.

Desde a Renascença, era frequente que artistas incluíssem autorretratos em suas obras, o que Caravaggio fez algumas vezes. Nos temas com cabeças decapitadas, como destacou Denis Hollier, temos os exemplos de Allori que representou sua amante como a personagem bíblica Judite que segura a cabeça de Holofernes, um retrato dele mesmo; e de Giorgione, que pintou Davi vitorioso sob seus próprios traços. Apesar de o tema da pintura que analisamos hoje ser o mesmo da de Giorgone, a representação, é mais próxima da de Allori, tanto segundo a ótica na qual o artista se coloca sob os traços do personagem visto com mau e que é decapitado no final da história, quanto sob a perspectiva do amor humanista, no qual se sofre nas mãos do ser amado, pois é possível que Caravaggio tenha usado um jovem de sua entourage como modelo – algo bastante comum na Renascença – para o Davi e fofocas de seu interesse por moços circulavam naquele tempo.

Pelo que se sabe, o tema da pintura foi escolhido pelo próprio artista, que já  havia representado anteriormente em outros trabalhos, em composições diversas. Esta teria sido realizada provavelmente em Nápoles e enviada ao cardeal Scipione Borghese para que a entregasse como um presente ao seu tio, o então papa Paulo V, para que o pontífice o perdoasse e ele pudesse voltar do exílio, no qual estava desde 1506, quando da acusação de assassinato. O perdão papal veio; entretanto, Caravaggio morreu em circunstâncias até hoje misteriosas em Porto Ercole, na Toscana, antes que pudesse volta a Roma.

Talvez, o ar de piedade de Davi, do qual falei mais acima, responda ao desejo o artista de que o papa se apiedasse de sua situação, seu desespero mostrado através do sofrimento na face de Golias. Ainda seria possível que Caravaggio se representou sob os traços de uma figura bíblica negativa, que é decapitada por um dos personagens dos mais elogiados da história santa, sentindo-se, talvez, culpado e reconhecendo seu erro, se submetendo ao julgamento do papa e da Igreja, em uma representação da Virtude e do Bem vencendo o Vício e o Mal. Além disso, alguns historiadores comentam que sua personalidade melancólica teria causado certo desejo de morte, fazendo sentido, assim, o artista colocar seus traços na cabeça de um cadáver.

Segundo Giovanna Potenza, devido a ter cometido um assassinato, ele poderia ser decapitado a qualquer momento por qualquer um que decidisse fazê-lo, e, portanto, a possibilidade de perder a cabeça o apavoraria.

Já segundo Sergio Rossi, pode se tratar de um duplo autorretrato, no qual o jovem Caravaggio estaria sob as feições de Davi e o artista como um homem maduro nos traços de Golias. Havendo, segundo ele, além da semelhança entre os dois rostos, o conflito interior da existência humana e a oposição adolescência X maturidade, inocência X vício, além de que o artista se colocaria, assim, nas mãos da justiça divina ao invés daquela terrena.

Por fim, Posèq que discute diversas possibilidades em seu artigo, aponta, que esse conflito interior pudesse ser o da agonia criativa, aludido por Michelangelo Buonarotti.

É possível que várias dessas e ainda outras hipóteses se sobreponham e se complementam, ao invés de se excluírem, pois é certo que quando não há uma encomenda definida, como se acredita ser o caso dessa obra, e o artista escolhe seu tema e como tratá-lo, seus motivos podem ser múltiplos e inconscientes, muitas vezes, desconhecidos a ele próprio.

 

Bibliografia/Links:

Denis HOLLIER, “À l’en-tête d’Holopherne” in Littérature, n°79 (1990), Michel Leiris, p. 16-28.
Disponível em https://www.persee.fr/doc/litt_0047-4800_1990_num_79_3_2537

Giovanna POTENZA, “Davide con la testa di Golia” è l’ultimo duplice autoritratto di Caravaggio?” in Vanilla Magazine, [Online]. Consultado em 06/07/220.
https://www.vanillamagazine.it/davide-con-la-testa-di-golia-e-lultimo-duplice-autoritratto-di-caravaggio/

Avigdor W,G. POSÈQ, “Caravaggio’s self-portrait as the beheaded Goliath” in Konsthistorisk Tidskrift /Journal of Art History (Vol. 59:3, 1990), p. 169-182.
Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/00233609008604263

“David con la testa di Golia” in Galleria Borghese, [Online]. Consultado em 06/07/220.
https://galleriaborghese.beniculturali.it/opere/david-con-la-testa-di-golia/

“David mit dem Haupt des Goliath” in Kunsthistorisches Museum, [Online]. Consultado em 06/07/220.
https://www.khm.at/objektdb/detail/426/

 

Fontes das imagens:

pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:David_with_the_Head_of_Goliath-Caravaggio_(1610).jpg

Por Ottavio Leoni – milano.it, Domínio público, commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=331612

 

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