Quando acordamos, todo dia, a confusão nos invade ao abrir os olhos. Ela é momentânea. Restabelecemos o mundo a cada despertar, sentimos os objetos familiares, a luz diária que invade o quarto, o sonho que vai embora. O despertar matinal (Le réveil matinal) de 1876, foi feito pela artista francesa Eva Gonzalès e representa a beleza expansiva desse exato momento, conseguindo lançar uma luz nova a um ato tão corriqueiro.
Eva Gonzalès, artista impressionista com algumas nuances de realismo, foi pintora e única aluna de Édouard Manet. Frequentou o estúdio do pintor Charles Joshua Chaplin a partir de 1866, trabalhando com o uso de pastel, por três anos. Não muito satisfeita com os estudos que vinha recebendo, Gonzalès pediu a permissão do pai para que recebesse lições no atelier de Manet, ato destacável dada a dependência que mulheres tinham de pais e maridos para tomadas de decisões. Ela conhecia muito bem o que buscava em seu trabalho. Consolidou-se uma relação de amizade entre os dois, sendo Gonzalès a única pessoa a quem Manet ofereceu aulas.
Ela fez um breve sucesso no Salão de 1870, mas muitas obras suas e mesmo seu nome ficaram por muito tempo associados a Manet, e esquecido entre as demais artistas impressionistas, como Berthe Morisot e Mary Cassatt. Há poucos estudos de sua obra e a maioria são notas biográficas da artista, fato que ocorre demais quando se trata de pintoras na história da arte, uma dificuldade para que encontremos reflexões sobre seus trabalhos. O quadro Um camarote no Théâtre des Italiens (1874) foi exposto em São Paulo na exposição organizada pelo MASP Histórias das Mulheres: Artistas Antes de 1900, em 2019.
A obra O despertar matinal chama a atenção pela sua composição impactante. Todo o quadro é de uma clareza muito equilibrada: o encanto exercido aos olhos está na massa branca usada na camisola, no travesseiro e no tecido que pende da cama. Em vez de pintar as dobras, Gonzalès escolhe deixar evidente a textura da tinta branca usada na fatura da obra, o que dá o efeito de luz interna que emana do quadro ao espectador. Tudo parece amanhecer com a personagem, a começar pelos elementos que a circundam.
Essa escolha de deixar a massa branca em evidência insere Eva Gonzalès entre os impressionistas, pois há algo de fortemente onírico no aspecto de mancha unido à técnica, que preza pela atmosfera e sentimento da cena. Os traços que demarcam o limite do vestido e do lençol são azuis, com tons de sonho, sumindo na massa. Isso proporciona a impressão de que, no sonho, ela está envolta por uma cápsula branca e protetora de sonhos e pensamentos soltos, difusos como o branco e o azul, e os quais se dissipam gradativamente ao se abrir os olhos.
Esse despertar matinal enfrenta o contraste da massa sonhadora com o contorno e o modelado mais detalhados do móvel de cabeceira e da própria personagem. Mesmo que a pele dela também apresente uma textura cremosa da tinta de um tom rosado predominante, ela é menos solta que os elementos em branco. Isso dá a impressão de que seu corpo está situado no presente, é firme, enquanto os sonhos estão sendo deixados para trás no instante do despertar.
Outra obra em que Gonzalès faz o mesmo, e a qual parece uma continuação da personagem que se levantou da cama, é Alcova (L’alcôve), feita entre 1875 e 1878. Nessa cena, não há móvel de cabeceira, nem flores, nem o livro abandonado antes de dormir. Há, no lugar, a fonte de luz amarela do sol, com pouca sombra no quadro. Ela existe apenas pelos tons azulados projetados entre os lençóis e o travesseiro e, mesmo o fundo, o chão e a massa escura debaixo da cama puxam mais para o marrom, enunciando uma leve proximidade com a luz advinda da janela.
Em O despertar matinal a personagem volta o olhar para um canto, talvez focando em alguém na porta, que vai embora, que apareceu no quarto e fala com ela. Em Alcova, a jovem parece mais autocentrada, pensando nos primeiros passos ao sair da cama, a mente mais distante. Há ainda uma perspectiva muito particular da artista, que é o fato de sua personagem não ser erotizada na cama. É comum, pelo trabalho de alguns artistas masculinos, conceber a mulher entre os lençóis com conotações eróticas, numa pose ou vestes que revelam um pouco do corpo ou sugerem mais do que o sono. As personagens nos dois quadros de Eva Gonzalès são dotadas de espontaneidade humana, situando a mulher na simples condição de acordar, deixando de servir sua imagem ao erotismo.
Ainda sobre a composição, os tecidos brancos na parte superior promovem dois cortes. Parece que a cena está um tanto desconjuntada, como a personagem confusa ao se levantar da cama ainda se acertando. Residimos no estado de confusão ao nos situar novamente no mundo conhecido. Marcel Proust inicia No caminho de Swann, o primeiro volume de Em busca do tempo perdido, com uma digressão sobre os diferentes estados de despertar na nossa cama e quarto.
Apoiava brandamente minhas faces contra as belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como as faces de nossa infância […]. Um homem que dorme mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao acordar consulta-os instintivamente e neles verifica em um segundo o ponto da terra em que se acha, o tempo que decorreu até despertar; essa ordenação, porém, pode-se confundir e romper (PROUST, 2004, p.10-11).
Mesmo que haja essa aparência de fixidez no quarto – acordamos e dormimos iguais no mesmo espaço – tanto os quadros de Gonzalès quanto o trecho de Proust nos mostra que, se observarmos atentamente, até o lugar mais familiar guarda suas estranhezas. A percepção desperta consegue nos tirar dessa familiaridade, quando sentimos um dia e outro, que as sombras são outras, ou os objetos emanam sensações esquecidas. Assim, um quarto pode ter vários outros contidos nele.
O despertar matinal e Alcova apresentam, portanto, o talento de Eva Gonzalès em fazer da composição um representar das sensações que se tem de algo tão comum, o acordar, o dormir, os nossos quartos. Em tempos tão concentrados em nossas casas, acordar em espaços de intimidade significa ainda resistir e fazer da percepção um caminho para reinaugurar novas formas de viver.
Referências bibliográficas
MANGANO, Brigid. The Problem of the Woman Artist: How Eva Gonzalès Was “Seen” in Late Nineteenth-Century France in Through gendered lenses. Editado por The Gender Studies Honors Society. Gender Studies Program. University of Notre Dame, Estados Unidos, p. 9-47, 2011. Disponível em: https://genderstudies.nd.edu/assets/40556/through_gendered_lenses_2011_final_proof.pdf
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução de Mario Quintana – 23. ed. rev. por Olgária Chaim Féres Matos. – São Paulo: Globo, 2004.
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