A representação das leitoras durante o Século das Luzes é um tema recorrente no seio das representações artísticas francesas, tal como a pintura. O livro, do latim “líber”, significando a parte viva da casca da árvore sobre a qual se escrevia no passado, é uma fonte de instrução que interessava particularmente os colecionadores durante o século XVIII. Verdadeiro meio de transmissão de conhecimento, permitia igualmente a difusão de ideias. A aparição do mercado do livro data do fim do século XV, a impressão tendo tido um papel fundamental na sua difusão no íntimo da sociedade. No século XVIII, a proliferação de livrarias foi notável; o número crescente de leitores se justificando pela alfabetização. Além disso, esse século corresponde ao momento no qual o campo literário se emancipou.
Entretanto, na época, o acesso aos livros era restrito para as mulheres. Com efeito, o romance permitia escapar da vida cotidiana se transportando a um mundo imaginário. E por fazer a mulher imaginar uma vida fictícia, era considerado como perigoso. Graças a obras contemporâneas (B.-C. Graillard De Graville, L’ami des filles – O amigo das meninas, 1762, e Fénelon, Traité de l’éducation des filles – Tratado da educação das meninas, 1687), podemos ver, como sua educação exigia, que as mulheres deveriam se concentrar somente em exemplares que as ensinassem como cuidar da casa e dos filhos. Conhecemos, entretanto, “femmes de lettres” (“mulheres de letras”, intelectuais) e escritoras, nessa época, mas a maioria delas sofreu censura. Aliás, a célebre Jane Austin, verá suas obras publicadas anonimamente.
Apesar desse acesso restrito, podemos, entretanto, constatar uma produção importante de pinturas francesas com a temática de uma mulher, anônima ou não, lendo um livro. Assim, os artistas contemporâneos não representam somente homens. Majoritariamente, essas leitoras estão sentadas em uma cadeira ou poltrona, em um lugar calmo. Elas estão sozinhas no cômodo. Representando figuras lendo, o pintor sugere um espaço calmo, no qual o tempo estaria suspenso. Finalmente, a única ação presente na composição seria aquela consistindo em virar as páginas do livro à medida que a leitura avança. O espectador verá um tempo fixo, onde a temporalidade da duração da leitura lhe será desconhecida.
Concentradas em seus livros, podemos então definir essa atividade como uma distração. Escolhemos um tema, pois este nos parece interessante. Assim, a leitura nos permitiria não somente de escapar da vida cotidiana de maneira efêmera, mas igualmente proporcionar um momento agradável. Um exemplar pode ser lido e relido várias vezes. A visibilidade das páginas danificadas pode ser um indício dessa ação repetitiva. Uma preocupação central desse estudo será, então, se interessar ao título da obra que a leitora está consultando. Com efeito, conhecer o assunto de uma leitura poderia revelar mais detalhes sobre a identidade das personagens representadas.
As leitoras podem ler todo tipo de livro. Alguns pintores franceses as representarão como figuras eruditas, como fez o pintor Maurice Quentin De La Tour (Mlle Ferrand méditant sur Newton – Mademoiselle Ferrand meditando sobre Newton, 1753, ou ainda Madame de Chatelet-Lomont, por volta de 1750). Essas representações revelam que as mulheres da alta sociedade da época estão à procura do saber. Le portrait de la Marquise de Pompadour ou O retrato da Marquesa de Pompadour, 1748-1755, do mesmo artista, é interessante para esse estudo. A marquesa, amante do rei Luís XV, representada como “femme des arts” (patrona das artes), está rodeada de livros célebres; uma obra de tragicomédia publicada em 1590, Pastor Fido de Gian Battista Guarini, La Henriade de Voltaire, o volume IV da Enciclopédia de Diderot e d’Alembert, e um esboço.
Maurice Quentin de la Tour, Mademoiselle Ferrand meditando sobre Newton, pastel, 73,5x63cm, 1753. Conservada na Alte Pinakotheke, Munique, Alemanha.
Maurice Quentin de la Tour, Madame de Chatelet-Lomont, óleo sobre tela, 38x45cm, por volta de 1750. Coleção particular.
Maurice Quentin de la Tour, O retrato da Marquesa de Pompadour, pastel e guache sobre papel azul colado sobre tela, 177x136cm, . Conservada no Museu do Louvre, Paris, França.
Jean-Marc Nattier escolherá representar a princesa de Rohan com uma única obra em um cenário exterior (Portrait de la princesse de Rohan – Retrato da Princesa de Rohan, 1741) como uma figura do conhecimento. O livro que ela segura delicadamente com dois dedos de sua mão esquerda será um exemplar de uma obra indispensável, L’Histoire naturelle – A História natural, e coloca assim a personagem como uma “femme de savoir”, mulher erudita. Várias obras notáveis de conhecimento se desenvolverão na sociedade do século XVIII. Geralmente, os livros de grande dimensão são dedicados aos conhecimentos importantes.
Jean-Marc Nattier, Retrato da Princesa de Rohan, óleo sobre tela, 145x113cm, 1741 Conservada no Toledo Musem of Art, Toledo, EUA.
As mulheres da época também são figuras devotas. Assim, a leitura da Bíblia era uma atividade quotidiana. O catolicismo era a religião da época. Esse fato já era perceptível na arte holandesa do século XVII, principalmente nas obras de Rembrandt (Velha senhora lendo, 1631). O pintor Jean-Siméon Chardin representou uma mulher fazendo uma garotinha recitar uma passagem do Novo Testamento (La bonne éducation – A boa educação, por volta de 1749). O interessante aqui é que a leitora não esta lendo para si mesma, mas está, ao contrário, ensinando.
Rembrandt Harmenszoon van Rijn, Velha senhora lendo, provavelmente a profetisa Hannah, óleo sobre painel de madeira, 60cm×48cm 1631. Conservada no Rijksmuseum, Amsterdã, Países Baixos.
Jean-Siméon Chardin, A boa educação, óleo sobre tela, 41.4 × 47.3 cm, por volta de 1749. Museum of Fine Arts of Houston, Houston, EUA.
Entretanto, acontece que em certas obras, o assunto do livro não possa ser conhecido. O espectador terá que se confrontar ao problema das palavras indistintas sobre o papel, participando assim ao mistério da pintura.
Uma obra mais famosa, Jeune fille lisant – Menina lendo de Fragonard, 1776, revela uma jovem mulher sentada confortavelmente sobre uma poltrona, lendo um livro. A calma reina no seio da composição. O espectador, olhando fixamente a doçura do rosto da jovem mulher pode se perguntar se ele realmente tem direito de ocupar seu lugar como observador. Fragonard representa um momento da vida quotidiana. Como foi dito anteriormente, a leitura já era perceptível nas cenas de gênero da pintura holandesa do século XVII. Podemos imaginar que a jovem mulher se escondeu em um cômodo secreto, um boudoir ao abrigo de olhares indiscretos para poder ler tranquilamente. Nenhuma porta ou janela é visível. O boudoir era um pequeno cômodo fechado que as mulheres apreciavam particularmente por permitir se esconder afim de não serem surpresas durante uma atividade secreta. A página direita do livro apresentada frente ao espectador poderia nos informar sobre o tema da leitura. Entretanto, Fragonard não introduziu uma escritura legível, esta é indistinguível. Se olharmos o formato do livro, podemos constatar que este tem um tamanho pequeno, podendo ser facilmente guardado em um bolso.
Jean-Honoré Fragonard, Menina lendo, óleo sobre tela, 81,1×64,8cm, 1176. Conservada na National Gallery of Art, Washington, EUA.
O tema da leitura podia ser erótico. É necessário, entretanto, notar que o termo “érotique”, “erótico” possuía outro sentido na época. Segundo o dicionário da Académie Française – Academia Francesa – de 1762, se referia ao amor, à poesia. A obra de Bernard d’Agesci, Femme lisant les lettres d’Heloïse et d’Abélard – Mulher lendo as cartas de Heloísa e Abelardo, 1780, apresenta não o momento da leitura, mas o tempo que vem depois. A figura levantando sua cabeça para o alto está sonhando. Sua leitura é de prazer, ela se coloca no lugar da heroína de seu livro. O seio visível da jovem mulher, um acidente luminoso sobre seu corpo, o colar de pérolas sobre a mesa, descreve a dimensão erótica da composição. É preciso saber que a leitura feminina incomodava na medida em que os homens pensavam que elas poderiam estar em perigo. Esta as transportaria a um universo imaginário, demasiadamente distante da realidade. O filósofo contemporâneo, Rousseau, evocou, ele mesmo, esse mau hábito das mulheres na vida quotidiana (Émile ou De l’éducation – Emílio ou Da educação, 1762, livro V). Ele lembra que o papel de uma mulher é cuidar de seu marido, de seus filhos e de seu lar. Certos romances poderiam mesmo lhes levar à loucura. As mulheres poderiam partir a um mundo imaginário de maneira efêmera, mas, igualmente, jamais voltar à realidade. Alem disso, sabemos graças a esse filósofo, que o pudor tinha um valor fundamental para as mulheres. Assim, essas leituras que podemos qualificar de proibidas, não deveriam se encontrar em mãos femininas, pois elas poderiam ofender seu pudor. Pierre-Antoine Baudouin, La lecture – A leitura, 1760, representa uma mulher sonhando provavelmente com o que leu. Ela adormeceu e ainda segura com alguns dedos de sua mão direita o exemplar que ela não tardará a soltar. Frente a seus sonhos, seu inconsciente colocou sua mão sobre seu vestido. O autor Jean-Marie Goulemot nomeou esse ato como uma “masturbação” (Ces livres qu’on ne lit que d’une seule main: lecture et lecteurs de livres pornographiques au XVIIIe siècle – Esses livros que lemos somente com uma mão: leitura e leitores de livros pornográficos no século XVIII, 1994). O doutor Tissot (L’Onanisme, dissertation sur les maladies produites par la masturbation – Onanismo, dissertação sobre as doenças causadas pela masturbação, 1760), médico do século XVIII, trata desse problema frequente e suas consequências.
Bernard d’Agnesci, Mulher lendo as cartas de Heloísa e Abelardo, óleo sobre tela, 81x65cm, 1780. Conservada no The Art Institut of Chicago, Chicago, EUA.
Pierre-Antoine Baudouin, A leitura, gauche sobre papel, 29×22,5, 1760. Conservada no Musée des Arts Décoratifs, Paris, França.
Assim, esse estudo deve imperativamente procurar estabelecer uma análise relativa ao espírito interior da leitora frente a sua leitura. Os trabalhos de Michael Fried (La place du spectateur, esthétique et origine de la peinture moderne – O lugar do espectador, estética e origem da pintura moderna, 1990) constituíram um ponto de partida frente a esse desafio. Com efeito, estudar o comportamento da personagem pode se caracterizar como um meio permitindo adivinhar o eventual conteúdo da leitura. Por exemplo, a visibilidade do título do livro na obra de Jean-Étienne Liotard, Portrait de Louise d’Épinay – Retrato de Louise d’Épinay, por volta de 1759, não é permitida ao espectador. O tema da leitura pode então aparecer como misterioso. Entretanto, se olharmos o rosto da personagem, podemos ver um olhar vago. Ela procura cativar o olhar do espectador ou seu espírito está bem mais longe? Seu dedo sobre o queixo poderia ser um indício de um tempo de reflexão. Ela pausou sua leitura, está refletindo, provavelmente sobre o que seu livro acabou de evocar. Ele fez nascer nela alguma coisa, uma reação. Seu pequeno sorriso frio e sua testa ligeiramente franzida são, mais uma vez, indícios revelando que a figura está absorta em outros pensamentos. Finalmente, podemos evocar o fato que haverá uma relação estreita entre a leitora e seu livro. Tocando o objeto, ela parece estabelecer um contato com ele. Assim, este pode aparecer como uma segunda figura permitindo uma conversa silenciosa. Com efeito, lendo, uma reflexão interior será criada. Um leitor não ficará passivo frente a essas linhas escritas. Imagens visuais aparecerão em sua mente.
Jean-Étienne Liotard, Portrait de Louise d’Épinay, pastel sobre pergaminho, 91x77cm, por volta de 1759. Conservada no Cabinet d’arts graphiques des Musées d’art et d’histoire, Genebra, Suíça. Doação de Charles Tronchin-Bertrand.
Assim, o estudo da representação das leitoras permitiu colocar em evidências várias problemáticas. De um lado, as mulheres do século XVIII gostavam de recorrer à literatura. Podemos constatar que ato de se esconder para ler um livro essa é somente o reflexo de uma proibição imposta pelos costumes da época. Uma mulher deveria velar a boa administração de seu lar e não se voltar a romances que poderiam perturbá-la.
Isabelle Maizeray
Traduzido por Aline Pascholati
*Esse artigo resume um trabalho de pesquisa realizado na Université de Paris I Panthéon-Sorbonne, sob a direção do professor Etienne Jollet
Fonte das imagens:
https://www.pinakothek.de/en/node/1984
https://en.wikipedia.org/wiki/%C3%89milie_du_Ch%C3%A2telet
http://musee.louvre.fr/oal/marquise_pompadour/marquise_pompadour_acc_fr_FR.html
https://www.mfah.org/art/detail/8991?returnUrl=%2Fart%2Fsearch%3Fq%3Dchardin
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Baudouin,_Pierre_Antoine_-_La_Lecture_-_c._1760.JPG