OBRA DE ARTE DA SEMANA: O heroísmo de A Liberdade guiando o povo

A obra A Liberdade guiando o povo às barricadas (1831), de Eugène Delacroix, já se tornou aquilo que podemos nomear de ícone. É grandiosa nesta significação dada a ela de heroísmo entre o marrom do campo de batalha e a imponente bandeira francesa, ilustrando capas de obras do século XIX como Os Miseráveis e até videoclipes atuais. Porém, este encontro do heroísmo com as emoções inflamadas do imaginário criado do período de revoluções na França dá, à obra, esse aspecto de ícone que, muitas vezes, aceitamos sem analisar o porquê.

De início, podemos lembrar que a história da arte denomina Delacroix como um pintor romântico. Havia, no trabalho de Delacroix, um espírito de experimentação que envolvia conceder à cor e ao movimento o poder de fazer a tonalidade emergir. As emoções pulsam por suas cores.

O quadro A Liberdade guiando o povo se inscreve no heroísmo personificado por uma mulher, no caso pertencente à classe operária e que comanda uma multidão. Primeiro, o que precisamos levar em conta é que se trata de uma expressão subversiva, em certa medida, de Delacroix. Neste momento da história da arte havia uma crise de discurso. Muitos artistas passaram a consultar compêndios publicados a partir do século XVI como um modo de guiar-se na aplicação de símbolos para construir alegorias. Um deles foi o dicionário Iconologia, de Cesare Ripa, em que era possível encontrar uma conotação dada à Liberdade clássica como um domínio de suas paixões e, ao mesmo tempo, encontrar a imagem tomada pelos romanos como uma “Liberdade ativa, que se obtém pela conquista. Traz uma arma numa das mãos – uma clava, um boné na outra, e aos pés uma canga quebrada”.

Delacroix fez uso dessas alegorias para compor a sua Liberdade. Pois uma alegoria não é desfeita por completo e ainda serve como referência, sem deixar de expor o contexto vivenciado na Revolução de 30. O curioso, porém, foi como a obra, ocultada diversas vezes, ganhou uma nova aspiração política quando reaparece exposta em 1848. Neste contexto, havia um descontentamento com os liberais que em 1830 haviam assumido, pela figura do duque de Orléans (rei Luís Filipe I). O ideário de luta e representatividade do povo acabou por ver a fundação de uma nova monarquia, e não uma República. O clima era de um descontentamento ganhando corpo pelas ruas.

Diante disso, podemos dizer que Delacroix compõe a nudez da Liberdade associando o particular ao universal, dando a ela a face de uma multidão operária francesa. Isso indica que Delacroix se distancia, em certa medida, da temática exclusivamente histórica que visava a Antiguidade ou uma homenagem ao Antigo Regime. Mas é preciso se questionar: o objetivo de Delacroix era encaminhar uma crítica representando as demandas populares? Não exatamente. O autor Jorge Coli demonstra que, a princípio, Delacroix “canta a Liberdade, mas não a República”. Ou seja, a demanda presente na Revolução de 1848, por uma República e maior participação popular, encontra no corpo desta figura o republicanismo, “as aspirações republicanas não podiam deixar de nela encontrar a primitiva síntese”. A Liberdade é tomada, portanto, como a personificação da República. E o que isso quer dizer?

O trabalho que Delacroix concede à figura da Liberdade, independente da correlação feita com o republicanismo, será o de considerar que esse conceito pode ser personificado por entre a multidão. É do alto dos corpos desfalecidos que ela se ergue, diante do sacrifício, e conduz aos três dizeres da Revolução Francesa aqueles que vêm ao seu encontro. Esta mulher que traz a Revolução de volta pode ser encontrada “no baralho, nas travessas e nos pratos, em caixas de charuto, em papéis oficiais, em almanaques populares, na grande pintura, na escultura”. Ela é o rosto de sua multidão ao mesmo tempo em que incorpora o ideário universal da liberdade.

Delacroix subverte também a imagem de uma Liberdade já vitoriosa. No corpo particular dessa figura feminina como parte da classe operária, o pintor indica as complexidades que envolvem a luta para essa Liberdade exaltada desde o hino até nas ruas e na bandeira. Além disso, a nudez da Liberdade remete à entrega às paixões e tal figura, de uma mulher envolvente que exige sacrifícios, ainda remete ao imaginário criado em torno de personagens femininas do século XIX como Salomé, Cleópatra, Carmen.

Entre os signos do quadro, a fumaça acima da Liberdade tem nitidamente os tons azuis mesclados ao branco como responsáveis por se associar às cores da bandeira francesa, os poucos objetos em vermelho espalhados pelo quadro e os fatos “realistas” que se misturam à nuvem, pela fumaça marrom das ruas em destruição. É um cenário que parece remeter aos sonhos pela neblina, mas não deixa de se firmar no horror de seu próprio contexto histórico. Jorge Coli usa o termo “alegoria real”, e a Liberdade de Delacroix é justamente esta figura que combate pelas ruas, junto aos corpos, guiando os seus defensores, e não do alto, distante, em sua grandiosidade enquanto alegoria.

A exposição da obra também tem suas curiosidades. A Liberdade foi recebida como uma provocação ao regime, e ocultada por diversas vezes: foi exposta pelo Musée du Luxembourg e, em 1833, é logo guardada, e devolvida a Delacroix em 1839. Só em 1848 é que o quadro reaparece, devido às circunstâncias políticas as quais tomam a Liberdade como este símbolo da República. Porém, depois da Revolução de 1848, o quadro é, mais uma vez, escondido. Em 1855, a França organiza sua primeira exposição industrial, mas a Liberdade não consta na lista de quadros. Diante disso, Delacroix protesta. O imperador Napoleão III intervém, e a obra é exposta. Contudo, um fato mais curioso ainda é que a boina que a Liberdade leva à cabeça já foi de um vermelho vivo. Considera-se que, para evitar a dificuldade de uma nova exposição, a boina ganha, pelo artista, o tom de um vermelho mais próximo ao marrom, para ser discreto entre a perspectiva já subversiva da obra. O quadro chega a ser ocultado mais uma vez, volta para o Luxembourg em 1863, na ocasião da morte de Delacroix, e vai para o Louvre apenas em 1874. Uma obra tão consagrada no imaginário francês levou mais de quarenta anos para ser aceita pela própria cultura francesa.

É assim que a Liberdade guiando o povo às barricadas se torna, aos poucos, este grande monumento em pintura à história francesa, uma obra na qual Delacroix explorava uma relação entre o “alegórico” e o próprio tempo em que se situava, sem deixar de conceder um importante papel à imaginação, responsável por compor a Liberdade a partir de diversas referências entre os estudos de Arte e a própria multidão das ruas diante do artista. Esta figura pode ser, portanto, a Liberdade que conduz sua população a um cenário promissor, onde os sacrifícios se vêem honrados por esta que ergue, sempre, a bandeira aos céus em tom de esperança.

Referências bibliográficas:

COLI, Jorge. O Corpo da liberdade: reflexões sobre a pintura do século XIX. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

FRIEDLAENDER, Walter. De David a Delacroix. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: Cosac Naify, 2001

 

Um comentário sobre “OBRA DE ARTE DA SEMANA: O heroísmo de A Liberdade guiando o povo

  1. Acho que se a pintura fosse aceita universalmente desde o primeiro momento significaria que ela não é tão boa quanto é……….haehaehaheha……….Waltinho diria que no primeiro momento sua aura era inquestionável……….haehaheahe……….

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