“A boneca” (1936), Hans Bellmer
Vocês só veem o ódio, mas, quando começa, é um ato de amor. Toda relação nasce de um sentimento bonito, são os humanos que acabam por destruir tudo, acrescentando carne, suor, saliva, fezes, esperma, pelos, excrescências. Ainda lembro o suspiro que me escapou quando a vi atravessando a rua, diáfana, pura, uma borboleta indo se juntar às demais meninas que corriam no pátio da escola. Passei semanas buscando alguém que fosse igual e, quando achei, esse ser era de plástico e não possuía alma, mas, ao mesmo tempo, era melhor do que você, pois nunca envelheceria, ou teria a pele alva traída por machucados, ou sentiria dor, medo, pânico, angústia. Amei daquela forma intensa com que somente um homem pode se entregar ao desvario, até o dia em que, atormentado pelo silêncio, eu disse fala, e você não falou, e eu disse sinta, e você não sentiu, e eu disse ame e você somente me olhou com oceanos azuis impassíveis. Então, eu te quebrei inteira. Pedaço por pedaço. Cortei, despedacei, desiludi. Eu te mutilei, queimei teu corpo, ouvi o plástico gemer de dor, mas você manteve seu silêncio magoado. Se você não me ama, então não sentirá nada por mais ninguém. Enquanto eu te matava, estava chorando, e não entendia como podia amar de forma tão dolorida a vítima enquanto a estava machucando. Os seus gritos silenciosos me atormentavam. Depois que destruí tudo o que você foi ou podia ser, tentei reconstruí-la de acordo com a minha memória de apaixonado, revivendo aquele fugidio sorriso de uma borboleta correndo ao atravessar a rua, mas eu, Victor Frankenstein incompetente, não consigo mais ter você de volta. Todos veem o ódio com que eu a tratei, mas esquecem que tudo começou com muito amor, e que, mesmo quando a destruí, fiz por que a amo. As pessoas esquecem que, quando faço a minha arte, eu sou o assassino – eu sou o Deus da Morte.
Fonte da imagem de capa: http://www.tate.org.uk/art/artworks/bellmer-the-doll-t11781
© ADAGP, Paris and DACS, London 2016
De quem é esse texto? É do Hans Bellmer? Gostaria de saber. Grata!
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O texto foi escrito pelo Gustavo Melo Czekster, inspirado pela obra de Hans Bellmer.
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