“Garota comendo pássaro (O prazer)”, 1927, René Magritte
A liberdade é quente e tem o gosto pastoso de sangue. Nas mãos da assassina, impregnadas de fúria contida, o pássaro agoniza em espasmos de dor, a vida se esvaindo em penas e vísceras enquanto ela trinca a carne ainda vibrante de medo. O vestido a oprime; o ar pesado a cansa; viver é seguir as expectativas dos outros. A jovem nasceu para servir, para obedecer, para abaixar a cabeça, para cumprir o destino de todas as outras mulheres que lhe antecederam, e ter essa consciência machuca mais do que o esperado. O sutiã invisível corta a sua respiração; as mãos pálidas deslizam nos ossos diminutos do pássaro, quebrando-os graças à força que imprimem sem querer, mas o ser não pensa mais em fugir, ele só pode morrer, e a dor dos ossos quebrados não é nada perto dos dentes ferozes que estraçalham a sua barriga e sorvem o seu sangue. Por muito tempo, a mulher olhou os pássaros na árvore do jardim; admirou os seus chilreios, impressionou-se com a alegria deles pulando de galho em galho, observou – com inveja – quando eles voavam para longe, indo para onde bem entendessem, sem ninguém para lhes controlar. Quando se aproximou da árvore naquele dia, tinha o seu objetivo em mente; esticou a mão, prometendo uma carícia na penugem do pássaro, que se aproximou, com a lentidão dos ingênuos. A mulher ainda escuta o som que escapou dos pulmões do pássaro quando foi agarrado com firmeza, o olhar incrédulo e luzidio que lhe lançou ao ver os dentes – aquela coluna branca repleta de lâminas afiadas – aproximando-se da sua barriga. Ainda recorda o suspiro que ele largou quando foi destroçado pela voracidade da sua assassina. A mulher come o pássaro, deleitando-se com a carne cada vez mais morta. Um prazer quase indecente irradia-se da sua boca ensanguentada e preenche a sua pele enquanto ela saboreia a vida de outra criatura. Em breve a mulher voltará aos grilhões com os quais é forçada a se acostumar, mas, hoje, a liberdade do passarinho vai ser um alívio para aquela raiva fria que somente um condenado à morte é capaz de sentir. Já que ela não pode ser livre, que o pássaro também não seja.