OBRAS INQUIETAS 27. “Melancolia e mistério de uma rua” (1914), Giorgio de Chirico

Na placidez dos eventos mais calmos existe um universo furioso de átomos e de intenções que se esboroam e lutam entre si, ansiosos por se revelarem ao mundo. Essa é a história de um crime: se vai acontecer ou não é irrelevante, pois ele existe somente na nossa expectativa. Podemos ser os assassinos, ou a vítima, ou os salvadores, e ter tais possibilidades nos transforma em indesejados voyeurs da cena que não deveríamos – ou preferíamos – ver. A menina brinca na rua; a sua solidão mede-se através do som dos passos amortecidos pela areia, a sábia areia que sorve sangue humano desde que o início, a indiferente areia que esconde segredos, cadáveres, sonhos. A sua infância tem o sabor doce de um futuro que não conseguimos ver, mas pode ser glorioso ou medíocre, assim como são todas as inocências antes de se transformarem em flores ou em medos. A rua inteira dorme, mas a tensão se esconde nas reentrâncias das paredes, nos bocejos dos arcos, no céu impregnado de azul que ondula em meio às nuvens invisíveis. Longe do olhar sonolento da rua, a sombra espreita a alegria da menina, cobiçando a vida que se esgueira por entre as esquinas. Não existem coincidências, e a carreta com portas abertas também espera o momento em que será acionada. Somente o tempo sabe o que vai acontecer naquela anônima rua que reconhecemos como a paisagem incômoda de um pesadelo sem fim; a rua continua dormindo, enquanto a criança corre, a sombra se angustia de expectativa e a carreta espera ser acionada. Os melhores mistérios são aqueles que não serão nunca resolvidos, sobrevivendo no campo exíguo da imaginação, equilibrando-se no vazio. A menina gira a roda e corre em direção ao destino que nunca saberemos qual é, mas a sombra no horizonte sabe – e espera com a sabedoria daqueles que estão mortos antes mesmo de nascerem.

Fonte da imagem:

http://www.galleryintell.com/artex/mystery-melancholy-street-giorgio-de-chirico/

Um comentário sobre “OBRAS INQUIETAS 27. “Melancolia e mistério de uma rua” (1914), Giorgio de Chirico

  1. olá, admiro muito essa obra, como também a interpretação desta pelo site, mas não entendi o final do texto – o qual foi muito bem construído – “e espera com a sabedoria daqueles que estão mortos antes mesmo de nascerem”, quem são aqueles que estão mortos antes mesmo de nascerem? (pensei na morte em si, mas o termo “daqueles” não confirma o pensamento) a sombra é detentora dessa sabedoria, quem é a sombra e quem são aqueles que morreram antes de nascer?
    espero ansiosamente pelo retorno 😀
    (a sombra poderia ser a personificação do futuro, do que estar por vir, dotada de sabedoria [?])
    obrigada ❤

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