Os laços desfeitos de Guerássim no conto “Mumu”, de Ivan Turguêniev

O conto Mumu, de Ivan Turguêniev retrata a vida do humilde Guerássim, um camponês levado contra a própria vontade a Moscou para trabalhar como servo doméstico. Homem forte e capaz de realizar sozinho o trabalho de vários mujiques, porém surdo de nascença, Guerássim enfrentava muitas dificuldades em se relacionar com os demais criados da casa. O mujique, como eram chamados os camponeses na Rússia czarista, que estava habituado à vida livre no campo, embora consiga desempenhar com força e agilidade todas as tarefas que lhe são ordenadas, torna-se cada vez mais isolado na cidade.

“A princípio a mudança não lhe agradou (…) Transplantado para a cidade, ficou confuso e aborrecido como um touro recém-tirado do pasto e colocado num vagão de trem. (…). Em meia hora estava tudo pronto, e então, parado no meio do quintal, Guerássim punha-se a observar boquiaberto as pessoas que passavam na calçada, como à espera de uma explicação sobre a sua estranha situação. ” (TURGUÊNIEV, 1990, p. 64)

Em Moscou, a primeira manifestação de afeto de Guerássim surgiu quando ele demostrou seu interesse por uma jovem empregada da casa. Tatiana, uma lavadeira muito tímida, tinha verdadeiro pânico a essa aproximação.

“Tatiana realmente não podia vangloriar-se do seu destino. Desde criança era maltratada: trabalhava dobrado e nunca ouvira um elogio; vestia-se com trapos e recebia uma miséria de ordenado (…) Só pensava em terminar o serviço a tempo e tremia à simples menção do nome da senhora, embora esta nunca lhe tivesse dirigido a palavra. (TURGUÊNIEV, 1990, p. 67)

Talvez tenha sido a empatia pela jovem que fez com que Guerássim se interessasse por ela. Assim como o mujique, Tatiana não tinha muita proximidade com a família, e não recebia qualquer reconhecimento dos patrões, tampouco mantinha laços de amizade com os demais empregados. Porém, embora Guerássim demonstrasse a todo instante seu afeto por Tatiana, ela o evitava. A aversão que Tatiana sentia por qualquer desconhecido, transformava-se em pavor quando Guerássim se aproximava.

Tatiana seguia realizando o seu trabalho e evitando Guerássim o máximo que podia, sem saber que fazia parte de um plano da senhora da casa. A patroa estava decidida a casá-la com Kapiton Klimov, um de seus empregados, acreditando que o casamento o afastaria do vício do álcool. Tatiana, sempre obediente, concordou com a ideia da patroa.

“Era sabido que Guerássim não suportava bêbados (…)Resolveram, então, instruir Tatiana para que ela se fingisse de bêbada e passasse, tropeçando e cambaleando, perto de Guerássim (…) O ardil funcionou (…)Guerássim agarrou-a e, entrando no quarto onde se reunira o conselho, empurrou-a em direção de Kapiton. ” (TURGUÊNIEV, 1990, p. 74-75)

Desiludido com o comportamento da amada, Guerássim assiste ao seu casamento com Kapiton, e ao sofrimento de Tatiana ao ter de suportar o marido que passa a embriagar-se diariamente até o dia em que o casal é expulso da casa da patroa e enviado a uma aldeia distante.

“Guerássim saiu do seu quarto, acercou-se de Tatiana e entregou-lhe um lenço vermelho de algodão que havia um ano comprara especialmente para ela. Tatiana que até aquele momento suportava com indiferença todos os reveses de sua vida, dessa vez não conteve a emoção e chorou”. (TURGUÊNIEV, 1990, p. 76)

Esse foi o primeiro vínculo afetivo que Guerássim tenta estabelecer em Moscou, mas devido à interferência direta da senhora da casa, devemos ressaltar que os senhores tinham o poder absoluto sobre a vida dos servos, tendo a servidão sido abolida na Rússia apenas em 1861, o seu destino, assim como o destino de Tatiana, não lhe pertencia.

No mesmo dia em que Guerássim assistira a partida da jovem, ele encontra um novo ser a quem dirige o seu afeto. A cachorrinha Mumu.

“Entardecia. Ele caminhava sem pressa, olhando para a água. De repente percebeu que algo se debatia no lodo. Aproximou-se e viu um cachorrinho branco com manchas pretas, que escorregava a cada tentativa de sair da lama. O bichinho estava todo molhado e tremia de frio. Guerássim apanhou-o e tomou apressado o rumo de casa. ” (TURGUÊNIEV, 1990, p. 76)

A cachorrinha Mumu torna-se a companheira inseparável do mujique durante aproximadamente um ano. A manhã em que a senhora da casa avistou Mumu no quintal foi um dos últimos momentos em que Guerásim pode manter por perto sua única amiga. Após ser rejeitada por Mumu quando tentava aproximar-se dela, a patroa passa a perseguir a cachorrinha inventando motivos para que o mujique se livrasse dela.

“– Que cachorro é esse que passou a noite inteira latindo no quintal? Ele não me deixou dormir. (…) – Então para que precisamos de outro cachorro? É só para fazer desordem. Esta casa está sem direção, isto sim! E para que o mudo precisa de um cão? ” (TURGUÊNIEV, 1990, p. 82)

Guerássim, então, recuperou Mumu após ela ter sido levada por um dos empregados, e conseguiu mantê-la escondida em seu quarto por algum tempo até que, numa noite, agitada pelo barulho que fazia um bêbado que passava em frente ao portão, Mumu começa a latir, acordando a patroa, que furiosa, exige que a cachorra seja sacrificada. Sob as ordens da patroa, os criados cercam o quarto do mujique até o momento em que ele abre a porta e segue carregando Mumu em direção à taberna.

“Mumu pôs-se a comer, mal encostando o focinho na comida. Guerássim ficou observando-a longamente, duas pesadas lágrimas rolaram dos seus olhos: uma caiu sobre a cabeça da cadelinha, e a outra na sopa. (…) Finalmente, Guerássim aprumou-se e, com raiva, atou a corda aos tijolos que apanhara, fez um laço, colocou-a no pescoço de Mumu, ergueu a cadela sobre o rio, olhou-a pela última vez. ” (TURGUÊNIEV, 1990, p. 90)

Ao jogar Mumu novamente no rio, de volta às águas como no dia em que ele a resgatou, o mujique está encerrando um ciclo em sua vida. Guerássim, que jamais quis deixar sua aldeia natal, retorna para ela sozinho. É como se a morte de Mumu fosse a morte de sua servidão. Mumu foi a segunda e última tentativa de Guerássim de criar algum vínculo afetivo.

“Guerássim continuou a levar a sua vida de mujique. Mas os vizinhos notaram que desde o seu retorno ele parara de olhar para as mulheres, e que nem mesmo um cachorro ele tinha. ” (TURGUÊNIEV, 1990, p. 93)

Retornando a sua aldeia, Guerássim reassumiu sua condição de homem livre, optando por uma vida solitária, como a que vivia antes de ser levado para Moscou. Para Guerássim, os mesmos laços que uniam os seres, também os aprisionavam.

Referências:

TURGUÊNIEV, I. O relógio. Editora Scipione: São Paulo, 1990.

Compre os livros e traduções de Fernanda Mellvee, autora desse post, aqui.

 

 

2 comentários sobre “Os laços desfeitos de Guerássim no conto “Mumu”, de Ivan Turguêniev

    1. Obrigada pela leitura, Carlos. “Mumu” é um conto bonito e triste, como a maioria das obras de Turguêniev. Recomendo também “Relíquia viva”, “Ássia” e “Primeiro amor,” que assim como “Mumu,” são histórias profundas, apesar da aparente despretensão..

      Curtido por 1 pessoa

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