Caro, Gustave Flaubert
Há semanas que tenho perdido a luz, o rumo e criado pequenos monstros caseiros. Há dias que já não sei o que é dormir no horário certo, me pego sufocado, preso em palavras que não podem ser ditas pela madrugada silenciosa que se estende em todo o meu quarto. Ao amanhecer, finjo que essa dor não é minha e a levo para passear, bem presa a coleira. Nas ruas as pessoas me acenam e passam reto, ninguém o vê como monstro, apenas como mais um animal de estimação.
Pensei em diversas formas de destruir esse pobre animal bestial. Tentei parar de alimentá-lo, mas vinha a terrível madrugada e o empanturrava de dores, pensamentos e situações tiradas direto do ambiente ocioso de um homem perdido em sua ansiedade. A besta continuava ali, não havia mais luz, pelo menos assim eu achava até que conheci suas cartas e a besta da ansiedade, ali, repousou. Por enquanto.
Em algum momento da minha vida, notei que eu senti um forte prazer em escrever, criar e usar a escrita para me expressar sem necessidade da prosa ao vivo, que muitas vezes me atrapalhava (mais uma vez, graças a besta da ansiedade). Escrevendo, eu poderia controlar o tempo e o pensamento ansioso, não teria como atropelar palavras, não há nem um respiro, tudo que preciso é parar, pensar ou apagar.
Mas ao mesmo tempo que mantinha esse prazer, percebia que eu não me encaixava no padrão escritor. Quando mais jovem não dava muita atenção para a literatura (me embrulha o estomago só de lembrar) ou me achava capaz de escrever algo atraente pra algum leitor abandonado.
Quando cansei de me lamentar, levantei e comecei a escrever, eis mais um problema: as palavras não saiam com toda facilidade. Minha mente vivia acumulada de idéias, textos e até poemas, mas na hora de me sentar e passar isso a um papel, eu travava e com muita dor e muito tempo, saia.
Aliás, devo aproveitar o momento e dizer uma das coisas que mais me apavoram: uma folha em branco. Nela eu enxergo muitas coisas, mas principalmente o inicio de uma crise existencial. Ela me sufoca, pois me mostra que ainda nada foi produzido, que ainda sentirei muita dor se eu quiser, pelo menos, encher uma folha com palavras e rascunhos. Ela também é a primeira a me motivar e, ao mesmo tempo, me desmotivar. Se trata de um processo tão doloroso, que só me cabe o julgamento e a autoestima baixa, apesar dali poder caber algum futuro sucesso pessoal.
Passei a crer que a escrita talvez não fosse para mim e que o sonho de compor histórias e contos fosse apenas uma epifania. Afinal, como poderia ser um escritor se havia tanta dor, desorientação e desorganização dentro da minha pobre cabeça? Eu compunha imagens bem diferentes dos escritores, neles eu via uma segurança, que eles praticamente já acordavam e sentiam sobre o que e quem escreveriam em seus textos.
Eu obviamente já conhecia Madame Bovary, Salammbô, Bouvard e Pécuchet e mais algumas de suas obras. Mas como qualquer escritor, eu pressupunha que havia uma facilidade. Em uma semana de muita fragilidade, um palestrante me apresentou suas cartas destinadas a sua amante Louise Colet e ao amigo Louis Bouilhet, em que você contava suas dificuldades, seus sentimentos mais raivosos em buscar a perfeição e da raiva que tinha em demorar a escrever algo.
Separei aqui, alguns trechos das suas cartas que tanto me aliviaram:
“Estou mais cansado do que se empurrasse montanhas. Há momentos em que tenho vontade de chorar. É preciso uma vontade sobre-humana para escrever e eu sou apenas um homem. […] Você sabe quantas páginas eu vou completar dentro de oito dias desde que voltei daí? Vinte. Vinte páginas em um mês e trabalhando pelo menos sete horas por dia; e qual o fim de tudo isto? O resultado? Amarguras, humilhações internas, nada em que se amparar a não ser a ferocidade de uma fantasia indomável”.
“Eu me odeio e me acuso por essa demência de orgulho que me faz arquejar atrás da quimera.”
“Passo várias horas a procurar uma palavra”.
“Ao escrever esse livro, eu sou como um homem que tocasse piano com bolas de chumbo sobre cada falange”.
“Este livro, no ponto em que estou, me tortura de tal modo (e se eu achasse uma palavra mais forte, eu a empregaria) que eu fico às vezes doente fisicamente. “
“[…] Bem ou mal, é uma coisa deliciosa escrever, não ser mais para si mesmo, mas circular em toda a criação de que se fala.”
Bom, alguns homens com a mentalidade mais conservadora, dizem que representatividade é uma besteira. Obviamente estou desvirtuando o sentido de quando dizem que “representatividade importa”, mas nesse caso fico aos prantos e aliviado em saber que algum autor consagrado se mostrou humano, frágil e sincero.
Não exagero quando me digo aos prantos e fortemente emocionado. Eu sou uma verdadeira bagunça e apesar de amar muito os resultados dos textos que componho, essa pressão em produzir algo bom, sempre foi muito torturante. Cada palavra bem encaixada era como uma faca cutucando as unhas da minha mão.
Veja só, depois dessa maravilhosa descoberta, me sinto até mais a vontade para escrever.
Peço também que entenda que o fato de toda a sua tortura ter sido exposta, não é uma fragilidade. Como eu disse acima, eu me sinto muito melhor agora. Se todos os escritores fossem expostos sobre esse assunto e também fossem sinceros sobre o doloroso processo de composição, talvez anos atrás eu já tivesse mais próximo da escrita, como hoje estou.
Sabe o que eu realmente aprecio na minha escrita? Bom, é que ao final dos textos, boa parte de mim vai embora.
“Quando é que virá o dia bem-aventurado em que escreverei a palavra fim?”
Um forte abraço, de um verdadeiro fã.