“Clube de Compras Dallas”. Não poderia ser mais surpreendido com um título de filme do que o sentimento causado quando do encontro com essa película. Jean-Marc Vallée abordou vários temas que carecem ser vistos com apreço necessário quando miramos o outro. O problema da alteridade é o pano que foi costurado por ali.
Há um caubói eletricista que empunha um estereótipo homofóbico portador de HIV. Há drogas. Dinheiro. Apostas. Há uma médica que se confunde entre sua profissão e aquilo que dela resta quando enfronhada em questões financeiras. Há um médico inescrupuloso que compõe o circo de vendas de remédios inovadores para tentar salvar as pessoas que foram apanhadas pelo vírus HIV em um momento de surto da doença – era o ano de 1986. É interessante perceber como os preconceitos estão ali evidenciados, estamos no estado do Texas. Há ainda a figura do Estado, que evidentemente despreocupado com o que o coquetel AZT causava aos pacientes, estabelecia um contato direto com os lobistas da indústria farmacêutica.
O filme é uma narrativa acerca de escolhas. O Estado norte-americano fez a sua: a preferência pelo mercado ante a singularidade dos humanos submetidos ao tratamento experimental do coquetel. O caubói eletricista também o fez: resolveu não atender às prescrições médicas e foi ao México buscar tratamento alternativo. Aliás, não falamos nessa película apenas de escolhas, falamos da necessidade de saber que elas existem. Assim como existem outras maneiras de existir. Essa ideia pode encenar a ruptura necessária com a tentativa de equacionar a existência, que não alcança o caubói Ron Woodroof (Matthew McConaughey), tampouco seu amigo travesti Rayon (Jared Leto), menos ainda todas as existências relegadas à margem “doente”.
O monopólio racionalizante advindo do pensamento moderno traz junto de si e em seu próprio fundamento a questão do saber científico. Este por si um dos principais argumentos ideológicos utilizados na contemporaneidade. Assim, se observarmos a luta do caubói infectado e de seu “amigo” travesti, salta-nos os olhos como a guerra entre a institucionalização do saber e seu uso são complicados. Ora, quando o governo resolve fiscalizar de perto o contrabando de drogas que aumentavam a vida dos infectados, ele faz sua escolha: retira a possibilidade de aumento da vida de um sem fim de pessoas cedendo ao monopólio do saber instituído pela indústria farmacêutica.
A discussão aqui se coloca no terreno movediço em que não surpreendentemente as mazelas recaem nas minorias. É interessante perceber como o caubói enrijecido pelo preconceito machista, ao perceber sua fragilidade e finitude humana, acaba por viver em meio àqueles por quem nutria um quase ódio. A finitude, essa que nos coloca frente a nós mesmo e o tempo constitui nossa sensibilidade. Nosso caminhar trágico para a morte vai sendo construída a partir do sentido conferido. Desde um amor, uma perda, um quadro pintado pela mãe ou um gole a mais de uma bebida que engana a vida.
No filme o que se vê é de um lado as pessoas lutando por uma réstia de vida, ou seja, querendo mais alguns minutos para tentar produzir um sentido para si, e de outro, o Estado, unido à indústria de remédios, que ao custo de alcance de lucros quer tornar a singularidade em uma nota de dólar que significa uma fiat lux a mais de vida. Esse contrassenso está na raiz mesma da palavra que advinda do termo pharmakon grego, o remédio ou a farmácia carece de ser ministrada de maneira correta, explico-me: uma superdosagem de um remédio torna-se veneno, a ausência dele também mata. Assim, nesse jogo perverso sobrevive a indústria. Retira a singularidade do rosto. E aposta na regra do mercado para contabilizar quem vive e quem morre.
Essas expressões impostas ideologicamente nos fazem lembrar Zizek ao dizer que as pessoas não admitem a existência fora da estrutura capitalista, porém aceitam a ideia do fim do mundo. O que seria mais absurdo? Crer que um modelo criado historicamente é natural? Ou não crer e/ou não acreditar na possibilidade da invenção? Do novo remédio. Do saber fora da ciência hegemônica. Do não saber. Das outras cores. Do humano para além do conceito? De outra vida…